O homem que às vezes voava
"As coisas parecem mais calmas quando vistas cá de cima".
No quinquagésimo terceiro andar de um edifício cinzento cor-de-cidade, funcionava um antigo escritório de contabilidade. O Sr. Jacinto olhava de quando em quando pela ampla janela à direita da sua mesa de trabalho. Sabia que lá em baixo a confusão reinava, fosse pelo trânsito caótico, envolto na ladainha das buzinas e insultos berrados pelos automobilistas, ou pelos manifestantes que se juntavam vindos de toda a parte, elevando não só palavras de revolta como também faixas e cartazes feitos artesanalmente. O Sr. Jacinto sabia tudo isto porque na sua hora de almoço tirava uns minutos para dar uma volta ao quarteirão. Se fosse pela experiência que tinha junto à janela, não se aperceberia de uma agitação tão grande: a altura a que se encontrava e a vista preguiçosa apresentavam-lhe um plano difuso, com pontos praticamente homogéneos a moverem-se num jogo repetitivo. Por tudo isto, o Sr. Jacinto voltava a sussurrar para os seus botões, alinhados na camisa enrugada: "as coisas parecem mais calmas quando vistas cá de cima". Uma questão de perspectiva.
Dos seus sessenta anos de vida, o Sr. Jacinto - Jacinto José Fernandes Vilela, de nome completo - tinha passado os últimos trinta e cinco naquele mesmo emprego e vinte deles naquelas instalações. Foi tempo suficiente para perder alguns cabelos, ganhar uma barriguinha, ver os filhos crescer, as despesas aumentarem, as mazelas surgirem e claro, o medo das alturas diminuir, condição necessária para quem se sentava cinco dias por semana num ambiente algo vertiginoso. O Sr. Jacinto dizia que não eram os medos que desapareciam, “tenho é menos paciência para perder tempo com eles”.
Este era daqueles dias em que o seu pensamento ultrapassava o quinquagésimo terceiro andar e pairava no vento da monotonia, esperando uma corrente mais forte para se perder mais um pouco e aguardando uma brisa suave ou uma tempestade repentina que o trouxesse de volta ao seu lugar, junto da mesa de trabalho. Pensava nesses mesmos sessenta anos, mais de meio século, ou meia vida se o tempo assim o permitisse; pensava nos anos que ainda lhe faltavam trabalhar, dos clientes que ainda tinha de aturar, do patrão que haveria de reclamar por mais alguma coisa, das contas que fazia fora de casa - sobretudo despesas, logo por azar. Pensava também nos sonhos guardados desde jovem, das férias que nunca tinha descansado, de voar naquele aparelhómetro chamado avião e ir para um país diferente de onde estava - que não era mau - mas saberia bem respirar um ar diferente. Imaginava aquela viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo, ele e a esposa no meio dos estrangeiros sorridentes, a descansar numa cadeira junto à piscina, a fazer compras no centro comercial, a passear em grupo pelas ruas das mais variadas cidades. Pensava também no quão depressa tudo se passava na vida e não havia sinais que parasse por uns tempos. Porque o tempo tem virtudes que ao mesmo tempo são defeitos: nunca se atrasa, nunca hesita e nunca se cansa.
Ora, todo este cenário estava carregado de um tom desanimador e era assim que o Sr. Jacinto se sentia quase sempre, excepto nas alturas em que voava. Não sabia como o fazia, mas fazia-o desde pequeno. A mãe dizia que saía ao avô paterno, antigo piloto, mas ele achava essa ligação um pouco rebuscada. Fosse como fosse, Jacinto Vilela voava, com duas condicionantes: a primeira era que o “voo” vinha por si mesmo, surgia quando lhe dava na telha, logo não servia para obter um emprego rotineiro (que teria de ser inventado, porque mais ninguém por ali voava, só uma ou outra pessoa no estrangeiro, mas pouco se falava do que se fazia ao certo); a segunda estava relacionada com o problema das vertigens, que por várias vezes tinham causado os episódios mais constrangedores que alguém que voa pode vivenciar – como daquela vez que o Sr. Jacinto voou descontroladamente por cima de uma das estradas principais da cidade e distraído embateu num semáforo, ou aquele episódio em que tentou salvar um gato de uma árvore e acabou por ser socorrido pelos bombeiros, por ter medo de descer. Mas como já foi referido, esse medo tinha vindo a ser mitigado com o avançar da idade e quando no minuto seguinte a sensação de voar começou a encher o corpo do contabilista, este aproveitou a deixa, abriu a janela e disse aos seus colegas de secção: “Vou dar uma voltinha, até já”.
O som destas palavras era o suficiente para alertar os seus companheiros do escritório. O que fumava muito (e que tremia quando não o fazia) pedia que lhe trouxesse mais um maço de tabaco da rua; a que estava sempre ao telefone clamava a última edição de uma revista cor-de-rosa e o mais nervoso pedia que se calassem, voltando atrás para conferir uma factura manhosa.
Antes de se empoleirar na janela, o contabilista despiu a gravata azulada, uma vez que esta lhe causava imensa impressão durante as viagens. Uma rabanada de vento cirandava a janela e o Sr. Jacinto lançou-se para o ar, pairando o mais graciosamente que lhe era possível nessa estrada invisível, ostentando o hábito de esticar os braços à Super-Homem. Quando a ventania amainou, decidiu baixar a altura, situando-se ao nível do vigésimo andar do edifício. Seguiu numa linha recta até encontrar o grande parque urbano, altura em que se virou de barriga para cima e flutuou como se estivesse à tona da água.
O Sr. Jacinto nunca se tinha afastado muito do sítio em que calhava começar o voo, por receio de que o efeito do mesmo desaparece e fosse obrigado a percorrer uma grande viagem de volta. O fim de cada sessão de voo era gradual, por isso o contabilista ficava tranquilo enquanto perdia altitude. Hoje sentia-se especialmente aéreo e contava voar por mais tempo do que os habituais quinze minutos. Para quem nunca voou por si próprio, o quanto não dariam por voar quinze minutos! Para o Sr. Jacinto, sabia a pouco. (Uma pessoa nunca está satisfeita com aquilo que tem). Mas hoje não, hoje haveria de voar por muito tempo.
O parque urbano lembrava ao Sr. Jacinto aquele espaço verde gigante que vira muitas vezes em filmes e revistas, cujo nome não se lembrava, mas ficava lá para a América. Comparativamente, este tinha uma área muito mais modesta, se bem que a beleza e a verdura também habitavam no pequeno pulmão citadino.
O pior inimigo do Sr. Jacinto deixara de ser as alturas e passara a ser os pombos. Surgiam agressivamente, como os aceleras que competem nas estradas, voando poucos metros à sua frente e obrigando-o a desviar-se para puder avançar. Todos os outros seres voadores comportavam-se civilizadamente: pardais, andorinhas, melros: até os patos e os gansos, seres de maior porte, mantinham-se ordenados e abriam espaço para o contabilista passar calmamente. Mas os pombos não. Tinham uma tendência natural para o caos. O Sr. Jacinto experimentou outra rota, longe dos “ratos com asas”. Horríveis. (Não se pode deixar de referir que o contabilista tinha imenso respeito pelos heróis de guerra, portanto abria uma excepção para os pombos-correio que receberam as suas condecorações pelos serviços prestados na Segunda Guerra Mundial).
Aquele voo estava a ser tão reconfortante que o Sr. Jacinto não ouviu o telemóvel tocar, nem os berros do patrão do outro lado da linha, a tentar lembrar-lhe que tinha ultrapassado o tempo normal de voo e que deveria regressar imediatamente à sua secretária. A brisa quente que agora soprava aumentava o sentimento de bem-estar e tornou-se mais fácil abstrair-se do que quer que fosse.
A viagem estava a ser excepcional. Provavelmente, a melhor que fizera até àquele dia.
Sobrevoou os limites da cidade e decidiu ir mais além. Passou pela zona industrial e depois pelos grandes armazéns; subiu mais uns metros para ter uma visão mais abrangente do cenário, cada vez menos citadino; finalmente viu a linha da costa, banhada pelo oceano e aproximou-se da água para ver o seu reflexo, que se manteve quieto somente enquanto a vaga de ondas não passava. Quando voava mais à direita, via a sua sombra esguia a sobrevoar o imenso areal.
E então reflectia.
O seu voo era uma espécie de talento, como há os que jogam à bola, ou os que percebem muito de matemática, ou os que tratam dos doentes. Se ele tivesse acreditado mais nessa habilidade, se se tivesse esforçado quando era mais novo, se tivesse discutido com outros o que fazer enquanto estava no ar, talvez o presente fosse como aquele mar, vasto e misterioso, transparente e infinita fonte de inspiração. Mas na Terra dos Ses, os sonhos metamorfoseavam-se lentamente em paisagens de melancolia. E veio mais um "se": e se daqui a um tempo, um mês, um ano, voltasse a puder voar deste modo privilegiado e observasse outra vez a cidade, o parque, a zona industrial, os armazéns e finalmente a praia e não houvesse memórias novas para recordar, apenas o envelhecer?
Uma pessoa por vezes decide, mas não faz e se não faz é porque não decidiu como deve ser. O Sr. Jacinto decidiu pela enésima vez e talvez por o voo ser maior que os outros ou porque havia maior determinação - fosse qual fosse a razão - aquela decisão converteu-se numa acção, verdadeira energia cinética: o Sr. Jacinto era a massa, movendo-se rapidamente (e literalmente) pelos ares e tudo isto dividia-se ao meio, que era assim que a coisa funcionava, segundo os físicos experientes.
Regressou sorrindo muito, entrando triunfantemente pela ampla janela e os seus colegas, ao verem expressão tão rara, olvidaram os pedidos feitos; o seu patrão estava furioso, face avermelhada e dentes comprimidos, segurando uma explosão iminente. E o Sr. Jacinto ria e dançava e pegava no seu patrão e agora dançavam os dois e a vermelhidão ia.
"Quem quer ser o primeiro a voar?"
E esta pequena frase resumia a mudança, a passagem de decisão a acção, um gesto simples para o contabilista que percebera finalmente que por mais pequena que fosse a parte de si que desse aos outros, ampliaria os seus efeitos pela empatia e cresceria, ao estar depositada nas mãos dos receptores. Passava a sua alegria para outros, contagiava como um vírus benigno - se tal é clinicamente aceitável: este, por sua vez, desenvolvia-se no outro, pois o sonho de alguns faz sonhar os restantes.
Nas viagens que fazia, levava uma pessoa de cada vez, espantando-se a si mesmo por conseguir levar indivíduos mais pesados sem se cansar, uns pedindo para se sentarem sobre as costas, outros presos apenas por uma corda, levando uma prancha que usavam para surfar pelas nuvens, como num desporto radical que ainda não tinha sido inventado.
O Sr. Jacinto voava agora sempre que queria e podia e a sua família acompanhava-o para todo o lado, de carro e as vezes até de avioneta. Os cabelos continuavam a desaparecer, a barriguinha estava mais controlada pelos voos regulares, os filhos cresciam mais um pouco, as despesas também, as mazelas antigas iam mas apareciam as novas e as vertigens já quase se tinham extinto. Embora tudo isto acontecesse, o Sr. Jacinto lembrava a diferença de atitude que agora tinha e compartilhava-a com os outros, de cada vez que voava: "as coisas parecem mais calmas quando vistas cá de cima".
Uma questão de perspectiva.
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