Caminhos
Descia a rua comprida, em cima da calçada estreita, encolhendo-se quando os pneus dos carros levantavam a chuva da estrada esburacada. O talho recebia carne fresca, carcaças penduradas na carrinha frigorífica; do restaurante saiam empregadas de limpeza, rindo alto enquanto transportavam os sacos de lixo para o exterior; na barbearia, o barbeiro acendia um cigarro sem pressa, do lado de fora do estabelecimento. O habitual.
Na bifurcação, Bruno seguia pela direita, mirando o eléctrico cheio de turistas que se deslocava no sentido inverso. Passou por debaixo da amoreira junto à casa abandonada e sentiu o chão peganhento, devido aos frutos esmagados que nunca foram recolhidos em tempo útil.
A rua começava a subir. Bruno desviou-se para deixar passar o dono da mercearia: atravessava a estrada rapidamente para evitar um veículo apressado. O vernáculo encheu a ruela cinzenta, diminuindo passado pouco tempo.
A chuva ameaçava voltar. A ameaça concretizou-se quando os primeiros pingos foram bater nos telhados mais altos. Bruno reparou no homem que vinha na sua direção - aparentava ser alguns anos mais velho que ele próprio. Impecavelmente vestido com um fato azul-escuro, trazia um semblante em tudo oposto à cor do guarda-chuva que transportava. As cores do arco-íris rodeavam o homem cabisbaixo, como uma aurela colorida, protegendo-o da intempérie. O seu caminhar era pesado, qual condenado a percorrer o corredor da morte. Passou sem pestanejar.
Bruno cobriu-se com a sacola bege mas não chegava para o abrigar convenientemente da chuva, por isso refugiou-se debaixo do toldo do posto dos correios. Não era o único a fazê-lo: no local estava uma mulher que suspirava por ver o seu jogging matinal sabotado e um rapazinho nos seus dez anos, carregando uma mochila que aparentava ser muito pesada. Bruno tirou um cigarro para queimar tempo.
Quando a chuva parou, Bruno continuou caminho, mas foi logo interrompido por um puxão no braço: o rapazinho olhava-o muito sério e parecia estar a fazer um reconhecimento facial de Bruno. Ao mesmo tempo, falava ao telemóvel.
- Sim, é como dizes, mãe. Espera um bocadinho.
Falou para Bruno peremptoriamente.
- O senhor desculpe, a minha mãe pediu que me levasse ao número dois da Rua Direita.
- Posso falar com a tua mãe?
- Sim.
Bruno recebeu o telemóvel e perguntou o nome à mãe do míudo. Esta não lhe disse o nome, mas Bruno reconheceu imediatamente a voz. Despediu-se e devolveu o aparelho.
- Vamos, a tua mãe está à espera.
Seguiram caminho, com Bruno a dar uma ajuda a carregar a mochila (e confirmava-se, era mesmo pesada). Encontrar a Rua Direita não era difícil: era a rua principal, junto do jardim onde Bruno parava todos os dias para desenhar nos seus moleskines. “Todas as terras têm uma Rua Direita”, pensou Bruno e o rapazinho parecia ter feito o mesmo, porque fez um gesto de concordância com a cabeça.
A chuva tinha parado, mas a água continuava a escorrer pelas ruas, provocando o caos no trânsito. Um gato miava angustiantemente numa árvore e um rafeiro ladrava na varanda de uma janela, parecendo alegre por aborrecer o outro animal. Alguns estabelecimentos tinham fechado a porta.
Chegaram ao número dois, fugindo das poças que preenchiam a calçada lamacenta. Da janela do primeiro andar surgiu uma mulher preocupada, mas ligeiramente aliviada por ver o seu filho são e salvo. Bruno reconhecia o rosto como tinha reconhecido a voz, mas não sabia dizer o nome da mulher. Sabia apenas que era alguém muito próximo, talvez um familiar. O rapaz despediu-se com um sorriso e entrou pela porta.
- Obrigada, Bruno - disse a mulher, seriamente - Não vás pela sombra.
A mulher desapareceu e a porta já estava fechada.
Pode parecer estranho Bruno não se lembrar do nome da mulher, mas ele era por natureza uma pessoa bastante distraída. No seu currículo, a palavra “distraído” era substituída por “contemplativo”. Era uma característica transportada para os flyers que resumiam a sua vida de artista, quando os seus quadros eram expostos em galerias locais.
Bruno estava a meio caminho do seu destino. O caminho era novamente a subir. O sol brilhava agora com tal força que os rios de chuva pareciam nunca ter existido, tal era a velocidade da evaporação. “Evaporação, condensação e precipitação”, pensou Bruno. A chuva voltaria a cair um destes dias.
Passou junto do local de desenho e observou um homem de fato azul-escuro caminhando sorridente, segurando um guarda-chuva repleto de várias cores. Não fosse pelo sorriso e por todo um ar mais saudável e Bruno diria que tinha visto o mesmo homem uns minutos atrás. Talvez fossem gémeos.
A certa altura, Bruno abrigou-se à sombra. Infelizmente, não seguir o conselho da mãe do rapazinho tinha consequências: Bruno perdeu-se num estranho beco apertado, escuro, emanando odores inaláveis, uma mistura de urina e restos de comida com alguns dias. As janelas estavam quase todas fechadas ou a fechar, uma resposta que Bruno não sabia se interpretava como medo ou simples desprezo pela sua pessoa, apelando por ajuda em vão. Parou uns momentos e recorreu ao seu exímio raciocínio espacial para reconstruir o local mentalmente e descobrir a saída. Mas o seu cérebro traía-o: todas as tentativas que fez conduziram-no ao mesmo local, uma parede grafitada com duas portas de madeira. Eram idênticas, sem nenhum sinal que as diferenciasse. Pôs-se à escuta. Do lado esquerdo ouvia-se o som do vento, mas a soprar muito levemente, como uma brisa de verão a agitar a vela de um pequeno barco; do lado direito, era também o vento que soprava, mas com uma intensidade voraz.
Abriu a porta da esquerda. Via um caminho maravilhoso, banhado de luz e de árvores primaveris. O fim não era visível, mas Bruno achava que se seguisse sempre a direito até à linha do horizonte havia de chegar ao seu destino. Na porta da direita, o caminho era sinuoso, as árvores estavam desordenadas e sem folhas e no céu escuro moviam-se nuvens ciclónicas. Entre as duas hipóteses, a escolhia não era muito complicada.
O caminho da esquerda era paradisíaco. A brisa que ouvira momentos antes acariciava-lhe a face, como uma mão feminina perfumada e a paisagem ficava cada vez mais bonita à medida que os seus pés deslizavam sem esforço pelo piso esmeradamente cuidado.
Bruno viu que o sol baixava, parecendo aproximar-se e aumentando o tamanho das sombras das árvores. “Não vás pela sombra”, ecoaram as palavras no seu pensamento. Não ia cometer o mesmo erro duas vezes.
Saiu do caminho, mas tudo à sua volta era agora um infindável deserto escaldante com areia flamejante que o impedia de avançar. Percebeu que não conseguia voltar para trás e que tinha de seguir pelo caminho original, cada vez mais pintado de negro pelas sombras compridas.
Esgotado, deixara para trás a sacola, deixando-se cair nos joelhos e tentando recuperar o fôlego. “Bem que podia chover agora”, queixou-se Bruno, lembrando a carga de água que caíra anteriormente. Quando finalmente chegou ao fim, sentia-se como se os anos tivessem voado: a pele ligeiramente mais imperfeita, as rugas mais vincadas, a roupagem mais formal. Mesmo para um artista como ele, que sempre preferira as sapatilhas a qualquer outro calçado, transportava nos pés um par de sapatos castanhos com uma sola forte. Mas estava no seu destino, o seu atelier, onde o esperavam os seus colegas, Rodrigo e Cátia. Também eles pareciam mais velhos. Rodrigo era o que estava mais diferente, porque tinha finalmente uma barba de homem e não a tentativa da mesma (do último...dia?). Cátia, que habitualmente mudava o visual não parecia ter sofrido uma mudança tão radical.
Bruno fez um intervalo a meio da tarde para fumar e deu de caras com o rapaz que tinha visto de manhã.
- Olá, a minha mãe quer falar consigo outra vez.
- “ Não te esqueças de sorrir”.
A mulher desligou a chamada e Bruno devolveu o telemóvel. O rapaz seguiu com a sua pesada mochila às costas.
Na hora de saída, Cátia esperou o namorado que vinha sempre buscá-la de moto. Bruno acendia outro cigarro enquanto Rodrigo baixava a grade da entrada.
- Até manhã - sorriu Rodrigo ao despedir-se. Bruno ficou aparado por uns momentos, até se lembrar de sorrir de volta e cumprimentar o colega.
No caminho de regresso, Bruno viu os dois homens iguais caminhar na sua direcção, um sorrindo e o outro não. Bruno decidiu sorrir. O homem que sorria continuou o seu caminho. O outro igual, de ar pesado tinha desaparecido.
Quando passou novamente pela rua Direita, viu também a criança de mochila às costas mais alegre que nunca. A mãe acenava para Bruno da janela. Bruno deu por si a descer a rua, com o facto azul-escuro e o mesmo chapéu de arco-íris que bem conhecia. E viu o seu anterior “eu”, vestido como estava pela manhã, com a mesma sacola bege e o semblante mais jovem.
Bruno continuou, abrindo o chapéu para a chuva que voltava a cair dos céus cinzentos. Sabia que, no fim do dia e apesar dos erros, dera ouvidos àquela mulher. Podia logo ter evitado a sombra, podia ter optado pelo caminho mais duro, porventura mais verdadeiro. Mas fora-lhe dado mais uma oportunidade e dessa vez escolhera acertadamente. O seu “eu” de criança e o seu “eu” de jovem adulto iriam com certeza passar pelo mesmo. “Que estranho tempo”, pensou Bruno, “mas que bem que sabe”.
Seguiram os Brunos, cada um pelos seus caminhos, que partiam todos do mesmo lugar mas que acabavam onde cada um quisesse. Pelo menos um deles estava no bom caminho.
Sem comentários:
Enviar um comentário