sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Diário das horas

Diário das horas

Dormi quatro horas hoje. Ontem também. E anteontem também. Houve uns dias que consegui dormir cinco, outros em que não dormi mesmo nada.
Olho para o calendário com os dias assinalados com uma cruz. Ando nisto há duas semanas. Devia ir ao médico. Amanhã peço a tarde e vou a uma consulta.
Cinco e meia. Não consigo voltar a dormir. Tomei um longo banho de imersão. Aos anos que não fazia isto. Esta espuma estava por incertar. Foi a prenda da Inês no Natal passado. Cheira a chocolate. Agora já não dá para a estrearmos juntos. Também já vai tarde.
Preparei-me como se fossem sete da manhã. Nunca tinha feito a barba com tanto cuidado. Super macia, sem qualquer corte. Cinco estrelas. O gel mantem o cabelo no lugar. Imagem aprumada para um trabalho esgotante. Visto as calças do fato e a camisa branca. O casaco deixo para mais tarde. A gravata vermelha fica-me sempre bem.
Vejo um filme das gravações automáticas. Anda tudo à porrada. Vejo sempre filmes destes. Uma pessoa entretem-se. O volume está quase no mínimo. Os vizinhos não têm culpa que eu esteja neste estado. Se bem que às vezes os oiça discutir a qualquer hora do dia...
Seis da manhã. Ponho o pão que sobrou do dia anterior na torradeira. O microondas aquece uma caneca de leite. O café solúvel está mesmo no fim. Pego no telemóvel e tomo nota na lista das compras. Toca o microondas, as torradas já estão no ponto. A manteiga derrete à superfície do pão, o café mistura-se com o leite no fundo da caneca. Bebo um bocado e faço uma carantonha: esqueci-me do açúcar. Não há. Mais uma coisa para a lista.
Sete e meia. Saio um bocado à rua. Lá está a minha vizinha a passear o cão. Bela vista. Aproximo-me um bocado. Infelizmente, aquele tipo do prédio da frente já a cumprimentou. Também traz um cão. Volta e meia e caminho para trás.
Compro o jornal desportivo. Hoje há jogo da Champions. Estamos em primeiro no nosso grupo. Vai ser canja.
Um quarto para as oito. Eu sabia que devia ter trazido o carro. A greve do metro obriga-me a apanhar o autocarro. Pareço uma sardinha em lata.
Oito e meia. O meu chefe está feito louco, dá-me um raspanete e manda-me de volta para o circo do costume. A Bolsa está ao rubro. “Espere um pouco, não compre já”. “Compre agora!”. “Venda! Venda! Venda!”.
Meio-dia. Estou na rua a comer a habitual sandes de doner kebab com a Sandra e o Paulo. Falam que se fartam sobre a subida da Empresa XYZ. Já vou ter com eles.
Cinco da tarde. Venho-me logo embora. A Empresa XYZ reverteu a tendência e caiu quase tanto como tinha subido. A Sandra e o Paulo tinham cara de poucos amigos.
Seis e meia. Saí na paragem errada. Odeio estes dias. Sigo aquela tarântula apressada.
Seis e meia. O relógio parou. Portanto, estou perdido e não sei que horas são. Só me restam estas tarântulas. São do tamanho de pratos. Tarântulas por aqui?
Oito horas. Cheguei a casa à dez minutos. Tomo um duche frio. Estava uma tarântula nas roupas. Não sei onde ela foi parar.
Oito e meia. Abro uma lata de atum e misturo um bocado de ovo. Sento-me em frente da tv. Oiço vozes. Devem ser os vizinhos a discutir outra vez.
Nove horas. Esqueci-me de pedir a tarde ao chefe. Ligo-lhe agora. Diz que não pode ser. Falo-lhe dos dias que tenho a haver. Mal humorado, diz que tire o dia todo.
Dez e um quarto. As vozes passam a ser uma só. Uma voz feminina. Não percebo nada do que diz. “Nação” e mais qualquer coisa.
Onze horas. Encontrei a tarântula. Ela fica rígida quando tento pegar-lhe. As tarântulas são venenosas? Guardo-a dentro de uma caixa de bolachas vazia. Fica silenciosa.
Meia noite e dois. Tento adormecer mas em vão. A voz seguiu-me até ao quarto, mas não entrou. Não está ninguém na porta, mas a mulher continua com as palavras estranhas. “Lucy…”, “Nação…”.
Uma e vinte da manhã. Sinto o toque da mulher nas minhas costas. Volto-me e lá está ela. É a tipa do cão. Acaricio-lhe a face e ela sussura: “A Lucy… A Lucy…”. A Lucy o quê?
Quatro em ponto. Estive a dormir. A mulher já não está cá. Tenho de marcar a consulta, mas ainda é cedo. Vou tentar dormir outra vez.
Cinco e dez. Procuro a caixa das bolachas. Está aberta, mas não há sinais do bicho.
Seis e meia. Não, espera lá, estou a ver as horas no relógio de pulso. No rádio são seis em ponto. Vejo o telemóvel. Cinco minutos adiantado. Vou guiar-me por este. Por isso, seis e cinco.
Sete e meia. Ponho nas notícias. Como uns cereais com iogurte natural. O cão da vizinha não pára quieto. Fecho-o na despensa. Então reparo que tinha deixado a porta da rua aberta. Oiço a mulher subir as escadas do meu prédio, a chamar pelo cão. “Lucy! Lucy, anda cá!”. Corro à casa de banho para remediar a minha imagem. Não dá. Ela pede licença para entrar. Finjo-me doente, simulando um pouco de tosse. Finjo também descobrir o cão (a cadela, aliás) fechada no quarto. Quando a dona tenta levá-la, repara que Lucy ladra efusivamente. Pede mais uma vez desculpa e despede-se. Eu faço o mesmo, tossindo. Diz que me paga uma bebida quente, como compensação pela confusão. Se eu puder, claro. “Meia-hora?”, pergunto. Ela concorda. Peço que toque à campainha, não vá eu perder-me com as horas outra vez.
Oito horas. Liguei para o consultório a marcar a consulta. Tenho de lá estar às onze e meia. A mulher toca à campainha. “Sim, é a Inês, a dona da Lucy”. Inês? Outra Inês…
Está frio lá fora. Ela traz um casaco cinzento, igual ao das revistas. Olha para o meu cachecol castanho. Gosto de usá-lo com este sobretudo. Não me lembro de me vestir.
Oito e quatro. Chegámos ao café da esquina. Muito moderno e acolhedor. A Lucy não veio, ficou na São. A São é uma amiga dela. A Inês repete o meu nome várias vezes, como se procurasse uma nova textura numa prova de vinho. Eu disse-lhe o meu nome?
Oito e vinte. Despedimo-nos, depois de trocarmos números de telemóvel. Ela tem de ir trabalhar.
Volto a casa. A porta está trancada. As chaves não parecem entrar na fechadura. Já está.
A casa está um caos. Pegadas da Lucy em tudo quanto é sítio. Os cortinados do quarto estão rasgados. Aquela Inês tem de me pagar várias bebidas…
Nove e quinze. A tarântula reaparece. Por uma razão que desconheço, dirige-se de volta à caixa de bolachas. Tapo a caixa e guardo-a na despensa.
Seis e meia. Pronto, é desta que tiro o relógio do pulso. Mas entretanto toca o telefone de casa. É daquela operadora telefónica famosa a exercer o telemarketing. “Estou satisfeito com o serviço”, respondo, na minha melhor voz. “Obrigado e resto de bom dia”, despedem-se, do outro lado.
Dez e quarenta. A sala de espera do centro médico está apinhada de utentes. Reconheço a dona Manuela, mirrada e encurvada pela idade e também o Samuel, cozinheiro no restaurante mais famoso da zona. Quando lhe perguntei porque estava ali, disse-me que tinha apanhado uma intoxicação alimentar. Espero que não tenha sido no restaurante dele.
Onze e meia. A médica diz que preciso mesmo de repousar. Pergunta-me inclusive se não tenho visto ou ouvido coisas estranhas. Insónias prolongadas conduzem invariavelmente a alucinações. Então lembro-me da história das tarântulas. Ela leva as mãos à boca. Pergunta em que dia aconteceu. “Ontem à tarde”, respondo, “Porquê?”. Imediatamente, levanta-se e tranca a porta do gabinete. Pelo telefone, avisa que a consulta vai-se prolongar um pouco mais do que o previsto.
  • Ainda a tem consigo?
  • Está a falar da tarântula?
  • Sim.
  • Tenho. Lá em casa.
  • Falou a alguém do assunto?
  • Não, nem me lembrei.
Parece muito nervosa. Num armário onde guarda a sua mala, está também o jornal local enrolado. Apresenta-me a primeira página. “Coleccionador excêntrico perde colecção exótica de tarântulas, ver página 5”. Na página cinco explica-se o descuido do coleccionador, que lamenta os problemas (sobretudo sustos) causados aos habitantes locais. “Duas delas andam por aí. São muito especiais para mim. Por favor, contactem a polícia ou diretamente para este número, ofereço recompensa”.
Nesta altura, fico estarrecido. Tanto?
  • Você não sabia disto até eu lhe ter dito. Vou querer a minha parte pelo silêncio.
Raios. Quero o dinheiro para mim, fui eu que encontrei. Aliás, a tarântula é que veio ter comigo! Por outro lado, não quero grandes alaridos e metade do “bolo” já dá para tirar umas merecidas férias. Concordo com a médica. “Vou ter consigo na minha hora de almoço, à uma da tarde.”
Meio dia. A caixa das bolachas está no chão e a tarântula não está à vista. Procuro em todas as divisões da casa. As tarântulas também sobem paredes? Pode estar em qualquer lado. Cá está ela. Sem lhe dizer nada, volta para dentro da caixa. Vou comer qualquer coisa.
Uma da tarde. A médica toca à campainha do prédio. Através do intercomunicador, digo-lhe que suba. Limpo o prato cheio de espinhas e cascas de laranja e certifico-me uma última vez que a casa está minimamente arrumada. Assim que ela chega, pede-me para fechar a porta e para lhe mostrar o espécime valioso. Fica contente por saber o que vai ganhar com o animal mas prefere manter-se afastada da criatura invulgar. Nunca percebi a aversão das pessoas a este bicho.
Ligamos para o número do coleccionador. É a médica que fala com ele, acalmando as suas mágoas, com a experiência dos seus anos numa profissão que implica ouvir os outros. O homem diz que dentro de meia hora está cá em casa. “Combinado, até já”.
Uma e vinte. Ofereci almoço à médica, mas com os nervos não lhe apetece comer nada. De vez em quando ouve-se uma buzinadela lá fora e corremos os dois para a janela. Não é o coleccionador. Tento uma conversa tranquilizadora. Não estou bem ciente do dinheiro envolvido. Deve ser de dormir pouco. Ela sorri sem muita convicção. Nunca tinha reparado que era tão atraente.
Uma e quarenta. O atraso do coleccionador deixa a médica ainda mais nervosa. Pede-me que confira a caixa das bolachas de dois em dois minutos. Ainda lá está a tarântula.
Sentados no sofá da sala, olhamos os dois para a televisão. Sempre ganhámos para a Champions. Nem me lembrei de ver o jogo. Os meus olhos fecham-se por uns segundos. Quando os abro a médica já não está ali.
Cinco minutos para as duas. A campainha toca. Deve ser o coleccionador. A médica corre para abrir a porta. O “boa tarde” açucarado morre no mesmo instante. Volta-se para mim: “Está aqui uma Inês para falar consigo. Ela não pode subir.” Fita-me com ar ameaçador.
Esta médica já me está a aborrecer. Preferia mil vezes dividir o prémio com a minha vizinha.
Digo-lhe que suba. A médica fica vermelha e quase solta um grito de revolta. Sente-se enganada. “Está na minha casa”, faço notar-lhe. Ela volta a sentar-se e range os dentes.
Abro a porta para a minha vizinha entrar. Não oiço a Lucy. Deve ter ficado outra vez na São.
Oiço passos pesados subirem a escada. Atrás de Inês estão dois homens gigantes, daqueles gorilas que acompanham sempre o pessoal importante. Tanto um como o outro têm óculos de sol escuros. Porque estão eles fardados à PJ?
  • É este canalha que me anda a seguir.
De que está ela a falar? Pedem-me que saia de casa. Deve ser, deve. Não sei do que me estão a acusar. A minha vizinha fala de como eu a sigo faz hoje duas semanas. Que maluquice. Até me acusa de lhe ter levado a Lucy durante a noite e a obrigar a pagar um resgate no café da esquina. A médica ouve tudo e parece totalmente surpresa, afastando-se lentamente da minha pessoa. Eu começo a contar a minha versão, que a cadela fugiu porque deixei a porta aberta e que lhe devolvi a Lucy antes da dona me convidar para tomar um café.
“Mentiroso! Como podes ser tão bom a mentir?”. Os tipos da PJ falaram do cachecol castanho que encontraram em casa da Inês, casa essa que estava virada do avesso. A sua vizinha São também ouviu o barulho às nove e meia da noite passada e mais tarde, por volta das três e meia da manhã. “Só falo na presença do meu advogado”, afirmo, já irritado. Mas que raio?
Tocam à campainha. O olha da médica cruza-se com o meu. Os agentes da PJ pedem-me delicadamente que atenda. Eu peço delicadamente que saiam e que voltem a contactar mais tarde. “Às quatro e meia na esquadra, se fizer favor”. Inês fica irritada por os tipos abandonarem o local. Desce as escadas com eles. Eu acompanho-os. Não os quero a falar com o coleccionador. A médica espera em minha casa.
Tarde de mais. O coleccionador pensa que a polícia está no local por causa da tarântula. A Inês ficou subitamente ansiosa. Está assustada? Os tipos da PJ lembram-se agora da estória da tarântula. “Sim, este senhor comunicou-me ao telefone”, diz o tipo mais novo a olhar para mim. Como é que um gajo destes se atreve a mentir-me na cara? O homem diz que, no caso dele, tinha falado com uma mulher. A médica apresenta-se sorridente, cumprimentando o colecionador confuso. Quando é que ela desceu? E a Inês, não estava aqui?
Três horas. Recompensa dividida a quatro. Um pouco mais para a PJ pela “perda de memória” sobre assaltos e cães. A médica está radiante. Quando acabam com o meu stock de minis, expulso-os a todos de casa. Incrível.  
Cinco da tarde. Adormeci em frente à tv. Preciso de um duche de àgua fria. Tento ordenar os pensamentos. Será que a minha vizinha estava a dizer a verdade? Foi há duas semanas que as insónias começaram. E eu nem sei bem porquê. Quer dizer que o episódio da Lucy invadir a minha casa e de tomar café foi tudo inventado? Parecia tão real! Mas então porque tinha ela desaparecido quando viu o coleccionador?
Seis e meia. Sei onde a minha vizinha mora. Escondo-me junto de uma àrvore larga. Está vestida para o jogging. Outra mulher, de ar simpático, segura a Lucy pela trela. Deve ser a São. A Inês faz várias festas à cadela. Depois retira um mp3 da bolsinha que leva à cintura e começa o seu treino. Sigo-a ao longe.
Seis e meia. A Inês caminha junto ao parque de estacionamento, nas traseiras do prédio dela. Começa a fazer alongamentos, olhando em volta. Nisto, chega um carro azul, todo “quitado”. Tem os vidros fumados. Quando baixam o vidro do condutor, não consigo ver nada, porque a Inês pôs-se entre ele e o meu campo de visão. Sei que ela mexeu na bolsa. Aquilo são notas de quinhentos euros? Espera, parece mesmo um dos tipos da PJ!
Seis e meia. Vejo-a a marcar o código da entrada do prédio. Fácil. Passados trinta segundos, asseguro-me que ninguém me vê, marco a sequência e a porta abre-se com um estalido. O elevador parou no segundo andar. Vou pelas escadas. O andar dela é o da esquerda. Encosto a cabeça na porta para tentar ouvir algum som. A porta está aberta. Entro.
Oiço gritos de alegria ao fundo do hall. Encontro a porta de uma divisão aberta e entro. A despensa. Encosto a porta. Vejo Inês ao telefone. “Sim, já tenho o dinheiro do Rui e do Miguel. Ficaram com a maior parte. Ah, entre nós? Foi cinquenta-cinquenta. Pois claro que aceitaram, fui eu que vi a tarântula! Aliás, foi a Lucy que deu com ela entre os cortinados.” Passou perto da despensa. Senti um nó na garganta. Por momentos, pensei que fosse abrir a porta. “Sim, está lá com a São. Não, não sabe de nada. Mas estava a dizer, tive de me encontrar com eles depois, porque o colecionador apareceu lá. Pois, ia ser estranho eu estar lá por causa do suposto assalto à minha casa, quando de manhã já tinha estado com o homem para devolver a outra tarântula…” Deteve-se perto da cozinha. Tem o telefone apoiado entre o ombro e a cabeça, enquanto enche um copo com àgua. “...Ficou baralhado, claro. Mas já não dorme à tanto tempo, ainda pensa que é verdade. Ainda bem que me disseste, senão não tinha coragem de ir lá hoje de manhã. Oh, tu tens sempre as melhores ideias. Enviar a Lucy lá para cima. Tive sorte que a minha fofinha não comeu a tarântula. Morta não servia para nada.”
Assim que a Inês desligou o telefone, saio da despensa e agarro-a, tapando-lhe a boca. Ela solta um grito mudo. Faço sinal para que fique calada. “Então foi isso, não foi?” cuspi, furioso, “Mas que trama tão bem contada! Aproveitareste do meu estado!”. Num impulso, lanço-a para o chão da cozinha. Ela soluça aflitivamente, sem dizer nada. Tiro-lhe o telefone das mãos. “Vamos lá ligar para este último número e expor o teu cúmplice. Preciso de provas para levar à verdadeira polícia”. Ponho o telemóvel na função de gravador. Estou acordadíssimo. A adrenalina faz o meu sangue fervilhar. Procuro a última chamada da lista. Número anónimo. As chamadas marcadas mostram vários números. Não tem uma lista telefónica na memória do aparelho. As lágrimas correm-lhe dos olhos.
  • Marca o número.
  • Eu… eu dou-te o dinheiro todo. Eu… não me faças nada…
  • Marca o número.
  • Pára… não posso. Sabes que não posso…
  • MARCA O NÚMERO, JÁ DISSE!!!
Gritei. Os vizinhos podem ouvir. Raios. Mas ela obedece. Marca o número. Retiro o telefone da mão. Tenho de ter a certeza que a chamada é feita. Só preciso de ouvir alguém atender. Ela chora ainda mais. “O que fui eu fazer…”, lamenta-se Inês. “Dá-me o telefone! Tu não podes!”
No preciso momento que oiço a voz do outro lado, o mundo à volta pára. Foi esta a voz que ouvi em minha casa ontem. E repete a mesma ladainha. “Lucy… Lucy… Nação”.
Agora percebo.

“A Lucy na São”.

ALUCY NA SÃO.

ALUCYNASSÃO.

ALUCINAÇÃO.

ALUCINAÇÃO.

ALUCINAÇÃO.









***
Sete e meia. Devo ter adormecido. Estou exausto. Sinto a respiração dela, quente nas minhas costas. Estou deitado de lado, apoiado no ombro direito. Vejo os cortinados rasgados. Uma sombra esquisita, como um animal, sobe pela janela.
  • Vou tirar o dia para dormir. Estas insónias têm de parar. Amanhã ligo ao chefe.
  • Fazes bem - responde - A trabalhar assim, qualquer dia dás em maluco.
As mãos dela envolvem-me a cintura. Entrelaço os meus dedos nos seus. Adormeceu. Por momentos, ainda penso acender a luz para confirmar. Que disparate. É ela. Ao meu lado. Como sempre.

É ela, não é?

Caminho

Caminhos

Descia a rua comprida, em cima da calçada estreita, encolhendo-se quando os pneus dos carros levantavam a chuva da estrada esburacada. O talho recebia carne fresca, carcaças penduradas na carrinha frigorífica; do restaurante saiam empregadas de limpeza, rindo alto enquanto transportavam os sacos de lixo para o exterior; na barbearia, o barbeiro acendia um cigarro sem pressa, do lado de fora do estabelecimento. O habitual.
Na bifurcação, Bruno seguia pela direita, mirando o eléctrico cheio de turistas que se deslocava no sentido inverso. Passou por debaixo da amoreira junto à casa abandonada e sentiu o chão peganhento, devido aos frutos esmagados que nunca foram recolhidos em tempo útil.
A rua começava a subir. Bruno desviou-se para deixar passar o dono da mercearia: atravessava a estrada rapidamente para evitar um veículo apressado. O vernáculo encheu a ruela cinzenta, diminuindo passado pouco tempo.
A chuva ameaçava voltar. A ameaça concretizou-se quando os primeiros pingos foram bater nos telhados mais altos. Bruno reparou no homem que vinha na sua direção - aparentava ser alguns anos mais velho que ele próprio. Impecavelmente vestido com um fato azul-escuro, trazia um semblante em tudo oposto à cor do guarda-chuva que transportava. As cores do arco-íris rodeavam o homem cabisbaixo, como uma aurela colorida, protegendo-o da intempérie. O seu caminhar era pesado, qual condenado a percorrer o corredor da morte. Passou sem pestanejar.
Bruno cobriu-se com a sacola bege mas não chegava para o abrigar convenientemente da chuva, por isso refugiou-se debaixo do toldo do posto dos correios. Não era o único a fazê-lo: no local estava uma mulher que suspirava por ver o seu jogging matinal sabotado e um rapazinho nos seus dez anos, carregando uma mochila que aparentava ser muito pesada. Bruno tirou um cigarro para queimar tempo.
Quando a chuva parou, Bruno continuou caminho, mas foi logo interrompido por um puxão no braço: o rapazinho olhava-o muito sério e parecia estar a fazer um reconhecimento facial de Bruno. Ao mesmo tempo, falava ao telemóvel.
  • Sim, é como dizes, mãe. Espera um bocadinho.
Falou para Bruno peremptoriamente.
  • O senhor desculpe, a minha mãe pediu que me levasse ao número dois da Rua Direita.
  • Posso falar com a tua mãe?
  • Sim.
Bruno recebeu o telemóvel e perguntou o nome à mãe do míudo. Esta não lhe disse o nome, mas Bruno reconheceu imediatamente a voz. Despediu-se e devolveu o aparelho.
  • Vamos, a tua mãe está à espera.
Seguiram caminho, com Bruno a dar uma ajuda a carregar a mochila (e confirmava-se, era mesmo pesada). Encontrar a Rua Direita não era difícil: era a rua principal, junto do jardim onde Bruno parava todos os dias para desenhar nos seus moleskines. “Todas as terras têm uma Rua Direita”, pensou Bruno e o rapazinho parecia ter feito o mesmo, porque fez um gesto de concordância com a cabeça.
A chuva tinha parado, mas a água continuava a escorrer pelas ruas, provocando o caos no trânsito. Um gato miava angustiantemente numa árvore e um rafeiro ladrava na varanda de uma janela, parecendo alegre por aborrecer o outro animal. Alguns estabelecimentos tinham fechado a porta.
Chegaram ao número dois, fugindo das poças que preenchiam a calçada lamacenta. Da janela do primeiro andar surgiu uma mulher preocupada, mas ligeiramente aliviada por ver o seu filho são e salvo. Bruno reconhecia o rosto como tinha reconhecido a voz, mas não sabia dizer o nome da mulher. Sabia apenas que era alguém muito próximo, talvez um familiar. O rapaz despediu-se com um sorriso e entrou pela porta.  
  • Obrigada, Bruno - disse a mulher, seriamente - Não vás pela sombra.
A mulher desapareceu e a porta já estava fechada.
Pode parecer estranho Bruno não se lembrar do nome da mulher, mas ele era por natureza uma pessoa bastante distraída. No seu currículo, a palavra “distraído” era substituída por “contemplativo”.  Era uma característica transportada para os flyers que resumiam a sua vida de artista, quando os seus quadros eram expostos em galerias locais.
Bruno estava a meio caminho do seu destino. O caminho era novamente a subir. O sol brilhava agora com tal força que os rios de chuva pareciam nunca ter existido, tal era a velocidade da evaporação. “Evaporação, condensação e precipitação”, pensou Bruno. A chuva voltaria a cair um destes dias.
Passou junto do local de desenho e observou um homem de fato azul-escuro caminhando sorridente, segurando um guarda-chuva repleto de várias cores. Não fosse pelo sorriso e por todo um ar mais saudável e Bruno diria que tinha visto o mesmo homem uns minutos atrás. Talvez fossem gémeos.
A certa altura, Bruno abrigou-se à sombra. Infelizmente, não seguir o conselho da mãe do rapazinho tinha consequências: Bruno perdeu-se num estranho beco apertado, escuro, emanando odores inaláveis, uma mistura de urina e restos de comida com alguns dias. As janelas estavam quase todas fechadas ou a fechar, uma resposta que Bruno não sabia se interpretava como medo ou simples desprezo pela sua pessoa, apelando por ajuda em vão. Parou uns momentos e recorreu ao seu exímio raciocínio espacial para reconstruir o local mentalmente e descobrir a saída. Mas o seu cérebro traía-o: todas as tentativas que fez conduziram-no ao mesmo local, uma parede grafitada com duas portas de madeira. Eram idênticas, sem nenhum sinal que as diferenciasse. Pôs-se à escuta. Do lado esquerdo ouvia-se o som do vento, mas a soprar muito levemente, como uma brisa de verão a agitar a vela de um pequeno barco; do lado direito, era também o vento que soprava, mas com uma intensidade voraz.
Abriu a porta da esquerda. Via um caminho maravilhoso, banhado de luz e de árvores primaveris. O fim não era visível, mas Bruno achava que se seguisse sempre a direito até à linha do horizonte havia de chegar ao seu destino. Na porta da direita, o caminho era sinuoso, as árvores estavam desordenadas e sem folhas e no céu escuro moviam-se nuvens ciclónicas. Entre as duas hipóteses, a escolhia não era muito complicada.
O caminho da esquerda era paradisíaco. A brisa que ouvira momentos antes acariciava-lhe a face, como uma mão feminina perfumada e a paisagem ficava cada vez mais bonita à medida que os seus pés deslizavam sem esforço pelo piso esmeradamente cuidado.
Bruno viu que o sol baixava, parecendo aproximar-se e aumentando o tamanho das sombras das árvores. “Não vás pela sombra”, ecoaram as palavras no seu pensamento. Não ia cometer o mesmo erro duas vezes.
Saiu do caminho, mas tudo à sua volta era agora um infindável deserto escaldante com areia flamejante que o impedia de avançar. Percebeu que não conseguia voltar para trás e que tinha de seguir pelo caminho original, cada vez mais pintado de negro pelas sombras compridas.
Esgotado, deixara para trás a sacola, deixando-se cair nos joelhos e tentando recuperar o fôlego. “Bem que podia chover agora”, queixou-se Bruno, lembrando a carga de água que caíra anteriormente. Quando finalmente chegou ao fim, sentia-se como se os anos tivessem voado: a pele ligeiramente mais imperfeita, as rugas mais vincadas, a roupagem mais formal. Mesmo para um artista como ele, que sempre preferira as sapatilhas a qualquer outro calçado, transportava nos pés um par de sapatos castanhos com uma sola forte. Mas estava no seu destino, o seu atelier, onde o esperavam os seus colegas, Rodrigo e Cátia. Também eles pareciam mais velhos. Rodrigo era o que estava mais diferente, porque tinha finalmente uma barba de homem e não a tentativa da mesma (do último...dia?). Cátia, que habitualmente mudava o visual não parecia ter sofrido uma mudança tão radical.
Bruno fez um intervalo a meio da tarde para fumar e deu de caras com o rapaz que tinha visto de manhã.
  • Olá, a minha mãe quer falar consigo outra vez.
  • “ Não te esqueças de sorrir”.
A mulher desligou a chamada e Bruno devolveu o telemóvel. O rapaz seguiu com a sua pesada mochila às costas.
Na hora de saída, Cátia esperou o namorado que vinha sempre buscá-la de moto. Bruno acendia outro cigarro enquanto Rodrigo baixava a grade da entrada.
  • Até manhã - sorriu Rodrigo ao despedir-se. Bruno ficou aparado por uns momentos, até se lembrar de sorrir de volta e cumprimentar o colega.
No caminho de regresso, Bruno viu os dois homens iguais caminhar na sua direcção, um sorrindo e o outro não. Bruno decidiu sorrir. O homem que sorria continuou o seu caminho. O outro igual, de ar pesado tinha desaparecido.
Quando passou novamente pela rua Direita, viu também a criança de mochila às costas mais alegre que nunca. A mãe acenava para Bruno da janela. Bruno deu por si a descer a rua, com o facto azul-escuro e o mesmo chapéu de arco-íris que bem conhecia. E viu o seu anterior “eu”, vestido como estava pela manhã, com a mesma sacola bege e o semblante mais jovem.
Bruno continuou, abrindo o chapéu para a chuva que voltava a cair dos céus cinzentos. Sabia que, no fim do dia e apesar dos erros, dera ouvidos àquela mulher. Podia logo ter evitado a sombra, podia ter optado pelo caminho mais duro, porventura mais verdadeiro. Mas fora-lhe dado mais uma oportunidade e dessa vez escolhera acertadamente. O seu “eu” de criança e o seu “eu” de jovem adulto iriam com certeza passar pelo mesmo.  “Que estranho tempo”, pensou Bruno, “mas que bem que sabe”.
Seguiram os Brunos, cada um pelos seus caminhos, que partiam todos do mesmo lugar mas que acabavam onde cada um quisesse. Pelo menos um deles estava no bom caminho.


O homem que às vezes voava

O homem que às vezes voava

 "As coisas parecem mais calmas quando vistas cá de cima".
No quinquagésimo terceiro andar de um edifício cinzento cor-de-cidade, funcionava um antigo escritório de contabilidade. O Sr. Jacinto olhava de quando em quando pela ampla janela à direita da sua mesa de trabalho. Sabia que lá em baixo a confusão reinava, fosse pelo trânsito caótico, envolto na ladainha das buzinas e insultos berrados pelos automobilistas, ou pelos manifestantes que se juntavam vindos de toda a parte, elevando não só palavras de revolta como também faixas e cartazes feitos artesanalmente. O Sr. Jacinto sabia tudo isto porque na sua hora de almoço tirava uns minutos para dar uma volta ao quarteirão. Se fosse pela experiência que tinha junto à janela, não se aperceberia de uma agitação tão grande: a altura a que se encontrava e a vista preguiçosa apresentavam-lhe um plano difuso, com pontos praticamente homogéneos a moverem-se num jogo repetitivo. Por tudo isto, o Sr. Jacinto voltava a sussurrar para os seus botões, alinhados na camisa enrugada: "as coisas parecem mais calmas quando vistas cá de cima". Uma questão de perspectiva.
                Dos seus sessenta anos de vida, o Sr. Jacinto - Jacinto José Fernandes Vilela, de nome completo - tinha passado os últimos trinta e cinco naquele mesmo emprego e vinte deles naquelas instalações. Foi tempo suficiente para perder alguns cabelos, ganhar uma barriguinha, ver os filhos crescer, as despesas aumentarem, as mazelas surgirem e claro, o medo das alturas diminuir, condição necessária para quem se sentava cinco dias por semana num ambiente algo vertiginoso. O Sr. Jacinto dizia que não eram os medos que desapareciam, “tenho é menos paciência para perder tempo com eles”.
Este era daqueles dias em que o seu pensamento ultrapassava o quinquagésimo terceiro andar e pairava no vento da monotonia, esperando uma corrente mais forte para se perder mais um pouco e aguardando uma brisa suave ou uma tempestade repentina que o trouxesse de volta ao seu lugar, junto da mesa de trabalho. Pensava nesses mesmos sessenta anos, mais de meio século, ou meia vida se o tempo assim o permitisse; pensava nos anos que ainda lhe faltavam trabalhar, dos clientes que ainda tinha de aturar, do patrão que haveria de reclamar por mais alguma coisa, das contas que fazia fora de casa - sobretudo despesas, logo por azar. Pensava também nos sonhos guardados desde jovem, das férias que nunca tinha descansado, de voar naquele aparelhómetro chamado avião e ir para um país diferente de onde estava - que não era mau - mas saberia bem respirar um ar diferente. Imaginava aquela viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo, ele e a esposa no meio dos estrangeiros sorridentes, a descansar numa cadeira junto à piscina, a fazer compras no centro comercial, a passear em grupo pelas ruas das mais variadas cidades. Pensava também no quão depressa tudo se passava na vida e não havia sinais que parasse por uns tempos. Porque o tempo tem virtudes que ao mesmo tempo são defeitos: nunca se atrasa, nunca hesita e nunca se cansa.
Ora, todo este cenário estava carregado de um tom desanimador e era assim que o Sr. Jacinto se sentia quase sempre, excepto nas alturas em que voava. Não sabia como o fazia, mas fazia-o desde pequeno. A mãe dizia que saía ao avô paterno, antigo piloto, mas ele achava essa ligação um pouco rebuscada. Fosse como fosse, Jacinto Vilela voava, com duas condicionantes: a primeira era que o “voo” vinha por si mesmo, surgia quando lhe dava na telha, logo não servia para obter um emprego rotineiro (que teria de ser inventado, porque mais ninguém por ali voava, só uma ou outra pessoa no estrangeiro, mas pouco se falava do que se fazia ao certo); a segunda estava relacionada com o problema das vertigens, que por várias vezes tinham causado os episódios mais constrangedores que alguém que voa pode vivenciar – como daquela vez que o Sr. Jacinto voou descontroladamente por cima de uma das estradas principais da cidade e distraído embateu num semáforo, ou aquele episódio em que tentou salvar um gato de uma árvore e acabou por ser socorrido pelos bombeiros, por ter medo de descer. Mas como já foi referido, esse medo tinha vindo a ser mitigado com o avançar da idade e quando no minuto seguinte a sensação de voar começou a encher o corpo do contabilista, este aproveitou a deixa, abriu a janela e disse aos seus colegas de secção: “Vou dar uma voltinha, até já”.
O som destas palavras era o suficiente para alertar os seus companheiros do escritório. O que fumava muito (e que tremia quando não o fazia) pedia que lhe trouxesse mais um maço de tabaco da rua; a que estava sempre ao telefone clamava a última edição de uma revista cor-de-rosa e o mais nervoso pedia que se calassem, voltando atrás para conferir uma factura manhosa.
Antes de se empoleirar na janela, o contabilista despiu a gravata azulada, uma vez que esta lhe causava imensa impressão durante as viagens. Uma rabanada de vento cirandava a janela e o Sr. Jacinto lançou-se para o ar, pairando o mais graciosamente que lhe era possível nessa estrada invisível, ostentando o hábito de esticar os braços à Super-Homem. Quando a ventania amainou, decidiu baixar a altura, situando-se ao nível do vigésimo andar do edifício. Seguiu numa linha recta até encontrar o grande parque urbano, altura em que se virou de barriga para cima e flutuou como se estivesse à tona da água.
O Sr. Jacinto nunca se tinha afastado muito do sítio em que calhava começar o voo, por receio de que o efeito do mesmo desaparece e fosse obrigado a percorrer uma grande viagem de volta. O fim de cada sessão de voo era gradual, por isso o contabilista ficava tranquilo enquanto perdia altitude. Hoje sentia-se especialmente aéreo e contava voar por mais tempo do que os habituais quinze minutos. Para quem nunca voou por si próprio, o quanto não dariam por voar quinze minutos! Para o Sr. Jacinto, sabia a pouco. (Uma pessoa nunca está satisfeita com aquilo que tem). Mas hoje não, hoje haveria de voar por muito tempo.
O parque urbano lembrava ao Sr. Jacinto aquele espaço verde gigante que vira muitas vezes em filmes e revistas, cujo nome não se lembrava, mas ficava lá para a América. Comparativamente, este tinha uma área muito mais modesta, se bem que a beleza e a verdura também habitavam no pequeno pulmão citadino.
O pior inimigo do Sr. Jacinto deixara de ser as alturas e passara a ser os pombos. Surgiam agressivamente, como os aceleras que competem nas estradas, voando poucos metros à sua frente e obrigando-o a desviar-se para puder avançar. Todos os outros seres voadores comportavam-se civilizadamente: pardais, andorinhas, melros: até os patos e os gansos, seres de maior porte, mantinham-se ordenados e abriam espaço para o contabilista passar calmamente. Mas os pombos não. Tinham uma tendência natural para o caos. O Sr. Jacinto experimentou outra rota, longe dos “ratos com asas”. Horríveis. (Não se pode deixar de referir que o contabilista tinha imenso respeito pelos heróis de guerra, portanto abria uma excepção para os pombos-correio que receberam as suas condecorações pelos serviços prestados na Segunda Guerra Mundial).
Aquele voo estava a ser tão reconfortante que o Sr. Jacinto não ouviu o telemóvel tocar, nem os berros do patrão do outro lado da linha, a tentar lembrar-lhe que tinha ultrapassado o tempo normal de voo e que deveria regressar imediatamente à sua secretária. A brisa quente que agora soprava aumentava o sentimento de bem-estar e tornou-se mais fácil abstrair-se do que quer que fosse.
A viagem estava a ser excepcional. Provavelmente, a melhor que fizera até àquele dia.
Sobrevoou os limites da cidade e decidiu ir mais além. Passou pela zona industrial e depois pelos grandes armazéns; subiu mais uns metros para ter uma visão mais abrangente do cenário, cada vez menos citadino; finalmente viu a linha da costa, banhada pelo oceano e aproximou-se da água para ver o seu reflexo, que se manteve quieto somente enquanto a vaga de ondas não passava. Quando voava mais à direita, via a sua sombra esguia a sobrevoar o imenso areal.
E então reflectia.
O seu voo era uma espécie de talento, como há os que jogam à bola, ou os que percebem muito de matemática, ou os que tratam dos doentes. Se ele tivesse acreditado mais nessa habilidade, se se tivesse esforçado quando era mais novo, se tivesse discutido com outros o que fazer enquanto estava no ar, talvez o presente fosse como aquele mar, vasto e misterioso, transparente e infinita fonte de inspiração. Mas na Terra dos Ses, os sonhos metamorfoseavam-se lentamente em paisagens de melancolia. E veio mais um "se": e se daqui a um tempo, um mês, um ano, voltasse a puder voar deste modo privilegiado e observasse outra vez a cidade, o parque, a zona industrial, os armazéns e finalmente a praia e não houvesse memórias novas para recordar, apenas o envelhecer?
Uma pessoa por vezes decide, mas não faz e se não faz é porque não decidiu como deve ser. O Sr. Jacinto decidiu pela enésima vez e talvez por o voo ser maior que os outros ou porque havia maior determinação - fosse qual fosse a razão - aquela decisão converteu-se numa acção, verdadeira energia cinética: o Sr. Jacinto era a massa, movendo-se rapidamente (e literalmente) pelos ares e tudo isto dividia-se ao meio, que era assim que a coisa funcionava, segundo os físicos experientes.
Regressou sorrindo muito, entrando triunfantemente pela ampla janela e os seus colegas, ao verem expressão tão rara, olvidaram os pedidos feitos; o seu patrão estava furioso, face avermelhada e dentes comprimidos, segurando uma explosão iminente. E o Sr. Jacinto ria e dançava e pegava no seu patrão e agora dançavam os dois e a vermelhidão ia.
"Quem quer ser o primeiro a voar?"
E esta pequena frase resumia a mudança, a passagem de decisão a acção, um gesto simples para o contabilista que percebera finalmente que por mais pequena que fosse a parte de si que desse aos outros, ampliaria os seus efeitos pela empatia e cresceria, ao estar depositada nas mãos dos receptores. Passava a sua alegria para outros, contagiava como um vírus benigno - se tal é clinicamente aceitável: este, por sua vez, desenvolvia-se no outro, pois o sonho de alguns faz sonhar os restantes.
Nas viagens que fazia, levava uma pessoa de cada vez, espantando-se a si mesmo por conseguir levar indivíduos mais pesados sem se cansar, uns pedindo para se sentarem sobre as costas, outros presos apenas por uma corda, levando uma prancha que usavam para surfar pelas nuvens, como num desporto radical que ainda não tinha sido inventado.
O Sr. Jacinto voava agora sempre que queria e podia e a sua família acompanhava-o para todo o lado, de carro e as vezes até de avioneta. Os cabelos continuavam a desaparecer, a barriguinha estava mais controlada pelos voos regulares, os filhos cresciam mais um pouco, as despesas também, as mazelas antigas iam mas apareciam as novas e as vertigens já quase se tinham extinto. Embora tudo isto acontecesse, o Sr. Jacinto lembrava a diferença de atitude que agora tinha e compartilhava-a com os outros, de cada vez que voava: "as coisas parecem mais calmas quando vistas cá de cima".
Uma questão de perspectiva.