quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Rugas e rebuçados



Era mais uma tarde fria, como só as tardes de inverno sabem ser. Um pequeno plano de luz convidou uma senhora idosa e uma criança a sentarem-se no banco de jardim. Aquele lugar era um refúgio de luz e calor (calor não, era apenas menos frio).
Como de costume, a senhora, conhecida como “avó”, retirava de um dos seus sacos um pedaço de pão rijo. A criança, chamada de “neto”, recebia o manjar e debatia-se para dividi-lo em pedaços mais pequenos. Os pombos eram menos que o costume, mas a luta pelo alimento era vivido do mesmo modo.
  • Oh vó, porque é que os pombos não dividem a comida? Não gostam uns dos outros?
  • Oh filho, não te preocupes, eles comem bem. Já viste que gorduchos estão!
Um casal estrangeiro seguia uma criança estrangeira, que por sua vez seguia uma bola cor-de-rosa. Percebia-se logo que eram estrangeiros: eram altos, loiros e até o andar era diferente. Os pais chamavam a filha com aquele falar engraçado e por ser engraçado o neto ria. A avó ria por ver o neto rir, até este se tornar sério e fazer mais uma das suas infinitas perguntas.
  • Oh vó, como é que a menina já sabe falar o inglês?
  • Oh filho, os pais deles falam inglês e ela de tanto ouvir aprende.
  • Eu oiço inglês e não aprendo - queixou-se o neto.
  • Mas a menina ouve desde bebé.
  • Então se eu ouvisse chinês desde bebé agora falava chinês?
  • Provavelmente…
  • Isso é o quê? “Provalmente”?
  • Quer dizer que sim, pronto.
  • Então se eu ouvisse muito muito chinês em pequeno agora tinha os olhos assim?
O neto puxou a pele junto dos olhos em direção às orelhas, com os indicadores. A avó riu.
  • Não, isso não! Olho o teu avô Baltasar, fala muitas línguas e tem os olhos redondos.
  • Hum, pois é.
O frio abraçava a avó e o neto, mesmo por debaixo dos casacos, cascóis, luvas, gorros, botas e embaciava os óculos da avó.
  • Vamos andando que está a ficar tarde e a avó ainda tem de fazer o almoço para amanhã.
  • Espera, vó! Só mais um bocadinho!
  • Amanhã vimos cá outra vez. Vamos lá.
Cabisbaixo e de braços cruzados, o neto procurou uma pedra que pudesse pontapear. Mas até as pedras deviam ter fugido do frio, porque não se via nem uma.
  • Oh vó!
  • Diz, filho.
  • Os estrangeiros também pensam como nós?
  • Penso que sim, porquê?
  • Se eles falam outra língua, podiam pensar coisas diferentes.
  • Oh filho, estás a ser muito filosófico.
  • “Fisolofico”? Isso é o quê?
  • É uma pessoa que pensa muito. Mas conta lá, como é que uma pessoa estrangeira pensa em coisas diferentes?
  • Hum… olha, o pai diz que só os portugueses dizem “saudade”. Os estrangeiros não pensam na saudade pois não?
  • Oh filho, nem sei bem. Devem pensar… afinal de contas, são pessoas como nós.
Todo o parque era agora sombra. O frio já não tinha ninguém para abraçar a não ser a avó e o neto. A avó descobriu rebuçados de mentol no bolso do casaco, oferecendo-os ao neto. Desembrulhando um dos rebuçados, o pequeno sorriu, um sorriso limpo da idade. A avó mostrava o seu sorriso mais antigo, enrugado, mas que nunca se gastava.

João Malcher - 23 de Dezembro de 2015

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Da escrita

Ele olhava-as delicadamente. Eram invisíveis e belas. Moravam na sua própria casa, de infinitos andares. Cada uma tinha o seu próprio espírito e quando se juntavam, ordenadas, materializavam um conceito. Se formavam fila, umas atrás das outras, ai já apresentavam paisagens, vales de memórias lentamente reveladas, descreviam homens de hodiernos fatos e cabelo bem aparado ou homens em trapos e capilar revoltoso. E, por mérito do artesão ou do observador da obra, diziam não só o que lá estava como o que não estava; diziam duas coisas diferentes ao mesmo tempo; não faziam muito sentido ao início e no final continham em si o significado de tudo (onde se inclui o que se sabe e o que não se sabe e ainda aquilo que se sabe, mas não se sabe dizer).
De que falavam elas naquele momento? O obreiro dispô-las cuidadosamente, alterando-as de quando em quando, buscando no intelecto um ordenamento conciso para a efusifivade desordenada do coração. Os simples extrairiam o signficado mais directo e um outro mais profundo, alimentado por experiências ímpares; os cultos abarcariam o quadro geral, mergulhando depois no microcosmos dos detalhes, fariam comparações de textos de outros autores que escreveram sobre o mesmo assunto. O importante é que tanto uns como outros retirassem entretenimento e ensinamento do produto final.
Ganhavam forma física e não perdiam a sua beleza. Aliás, seriam ainda mais belas, com novos contornos intencionalmente delineados, emanando uma palete colorida e cómoda, pois este  autor não inventava novas palavras. Inventava novos assuntos? Não foi já tudo escrito? De que valia o seu esforço, mero redizer de fenómenos cíclicos? As incertezas alastravam-se pelas vias da expressão, bloqueando-as. Por momentos, o artista reduzia-se a um poço de insegurança, esquecendo-se de que a Arte vive por si própria, não impondo mas expondo. Os donos dos entraves criticariam a repetição de filas ficcionais, clamando a sua substituição por indicações objectivas e úteis. “Felizmente”, recordou-se o autor, “da Arte podemos dizer apenas: porque sim.”
Em jeito de homenagem, juntou-as como lhe deu maior gozo, e as letras, como lagartas, tornaram-se palavras (como casulos) e findaram em frases, parágrafos, voando, como borboletas, em longos textos de mirabulantes dizeres. Contrariando o ser vivo a que foi comparada, a Escrita era um ser imortal, existindo após o pó da última estrela se dissolver na escuridão dos tempos.
Um sabor agridoce roçou os lábios do escritor, feliz pela construção do seu escrito mas saudoso por deixá-lo sair, rumo ao mundo, como um filho crescido.


João Malcher Santos
13 Outubro 2015

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Longe

Longe - 28 Maio 2015

Longe


Longe.
Mesmo quando cá estavas, já estavas muito longe.
Lancei cordas na esperança de construir pontes, procurei atravessar o mar que nos separava.
Mas só me cansava.
Apenas podia contemplar o teu brilho. O brilho que vivia nos teus sonhos.
Vi os que sonhaste e imaginei os que irás viver.
Também vi os pesadelos. Vi-os já crescidos e a tornarem-se gigantes.
Combati-os? Não como devia. Mas tu lutaste. E acabaste por ganhar. Com um sorriso.
Foste embora e voltaste. E de novo desapareceste.
Às vezes, recordo. Por momentos, ficas perto.
Breves momentos.
Mesmo quando cá estavas, já estavas muito longe.
Longe.

"One Month Challenge" - Abril/Maio 2015

Alguns dos posts de escrita que publiquei anteriormente, no blog "One Month Challenge".

26 Maio 2015

Cavaquinho, pequenino,
Quatro cordas de aço
Com a boca canta as notas
Que são tocadas no braço.

Cavaquinho, português,
Nascido na terra de Braga
Carrega em sim uma luz
Que nem de noite se apaga.

Cavaquinho, imortal,
Viajante do mundo inteiro,
Herança dos navegantes
Do Portugal pioneiro!




segunda-feira, 7 de setembro de 2015

A Utopia segundo Dionisio




Apraz-me falar de Dionisio.
Sigo-lhe a vida por uns tempos e concluo que um dia chega para o conhecermos. Pode ser hoje, por exemplo.
Não chove. Também não se vê o sol, há um céu mal pintado de nuvens longas, arrastadas sem vontade.
Com vontade, acorda Dionisio. Ele é cheio de vida, apesar da vida estar vazia dele. Por ser único, apraz-me falar de Dionisio.
Os críticos debatem a nova obra de Pierre Cars na televisão, no habitual programa da manhã. Dionisio faz zapping, sem encontrar algo de interessante: novamente o programa de teoria política, a análise do campeonato de xadrez noutro canal, o último capítulo da explicação detalhada dos aunerismas congénitos num terceiro canal. Dionisio para sempre no canal de culinária, observando a preparação de um pequeno almoço saudável. Ri-se, ao mesmo tempo que engole um pedaço gorduroso de bacon, previamente revestido com a gema do ovo estrelado que está no prato.
A sua mulher já está levantada, repetindo a tarefa de corrigir mais um exame do secundário. Retira os óculos de ver ao perto em cada pausa que faz, massajando os olhos azuis. Dionisio aproxima-se com um beijo de bom dia, recebido com cansaço mas devolvido com agrado.
  • Este ano estão um pouco piores - afirma Moira, erguendo as finas sobrancelhas - Neste momento, a média das notas é de dezasseis valores.
  • Dezasseis é ótimo - devolve o marido - Eles depois esquecem-se de tudo o que aprenderam.
  • Não comeces com isso. Precisamos do melhor de cada um deles.
  • Há vida para além das notas.
  • Há, claro que há, mas para a vida que querem, têm de ser mais ambiciosos.
  • Bah! Qualquer dia não temos ninguém que nos varra as ruas! - graceja Dionisio a caminho do chuveiro.
Moira fica em silêncio, marcando com um suspiro o regresso ao trabalho.
Dionisio canta alto no duche. É um hábito antigo, libertador, odiado pelo vizinho do lado. São dois problemas juntos: o desafino da voz e as letras brejeiras. Esse vizinho comenta com a sua mulher, quando a cantoria começa: “Que mal-educado!” e ela diz “O que será que a mulher viu nele!”. Moira viu a extravagância com olhos da mocidade; hoje vê algumas graçolas, as suficientes para manter o casamento. Pouco se alterou no modo de ser do marido. Ao fim e ao cabo, Moira não é fiandeira do destino.
Dionisio segue para a rádio, o seu emprego, uma rádio pouco convencional. As músicas nacionais são “pimba” e as restantes pop barulhenta, sem substância. Exaltam ao deboche, ao sexo desenfreado, às “parties” e “after-parties” e a um sem número de assuntos sem interesse. Mas como há um Dionisio, há também ouvintes, encantados com o bizarro apresentador. Ele é passar as referidas músicas, ele é entrevistar quem não deve, como o guionista da última novela, um tipo de programa transmitido apenas em canais privados. “Sandra vai fugir de casa e lutar pelo seu sonho: ser modelo fotográfico!”. E riem os dois, entrevistador e entrevistado.
Outro hábito de Dionisio causa má impressão: buzina quando o carro da frente cumpre o limite de velocidade, ultrapassando-o em manobras perigosas. Uma vez foi repreendido pela polícia e Moira repreendeu-o também, obrigando-o a dormir no sofá. Outra vez conseguiu subornar o polícia, secreto ouvinte da rádio, com ajuda de uma grade de minis que levava no porta bagagens.
Almoça como um animal. Nem respeita a roda dos alimentos. Onde estão as doses diárias recomendadas? Só ingere hidratos de carbono, açucares e pouco mais. Ao terminar, fuma. Não deixou o vício, nem quando a sociedade lhe deu a mão, mediante vários incentivos fiscais. Por incrível que pareça, nem todos os nossos impostos são bem usados.
Sai da rádio, liga a Moira. A mulher cumpre o intervalo das aulas, ouvindo Dionisio dizer que chega tarde a casa. Um “trabalho noutra rádio”.
  • Uma ajuda ao Ricardo, lá sobre os assuntos dos migrantes.
  • Não chegues tarde - responde Moira, secamente.
A sua mulher sabe muito bem quem são os “migrantes”: desportistas num pavilhão decadente, correndo atrás de uma bola num desporto erradicado, o futebol. E o dinheiro que fazem! Claro, existem aqueles velhos defensores das virtudes do desporto para o corpo e uns quantos efeitos sociológicos, da comunhão dos grupos. Convenhamos, pouco mais que isso se aproveita.
E no fim do jogo? Não importa o resultado, tudo acaba em copos: os vencedores mantêm viva a vitória, os perdedores afogam-na e os empatados empatam o tempo, bebendo.
Chega Dionisio empatado a casa, vermelho, rindo dos próprios soluços. O frigorífico estende-lhe um chamativo cacho de uvas e Dionisio leva-o para sala.
Está sentado no sofá, todo torto, tem sorte a mulher não apresentar queixa. Moira concentra-se ao máximo no debate político, gente humilde, transparente, em quem se pode confiar.
  • São uns tótós, não tiram nada para eles! - comenta Dionisio.
  • Tens noção do que dizes? Palavra de honra…
  • Não tiravas, não?
  • Acaba lá com essas coisas, se faz favor. Esta gente serve-te!
  • Anda lá, Moira, estou a brincar!
  • Não sei, às vezes assusto-me com essas brincadeiras.
  • Moira, então, isto é tudo um exercício mental que faço. Não é o que tu dizes, para fazer o exercício mental?
  • Ah, queres fazer um exercício mental! - a mulher desliga o televisor - Podes explicá-lo, estou curiosa em ouvi-lo.
Num arroto monumental, Dionisio limpa a voz galhofeira.
  • Imagina que os políticos roubavam, que o dinheiro dos nossos impostos desaparecia; imagina que na rádio não ouviamos essa treta to jazz, da música clássica, do rock “bom” (sempre músicas diferentes, não dá para fixar nenhuma); imagina que tinhamos programas de jeito, onde uma pessoa se divertia a ver cantores portugueses e se comentava a bola. Queres ver xadrez e documentários? Não era considerado serviço público; imagina, imagina, que belo seria o mundo, se vivessemos só para hoje!
Moira fecha a boca, aberta pelo espanto, inspira para trazer ar e expira o que não faz falta.
-  Ok, isso é uma distopia tão imbecil, mas tão imbecil e horrível…
- “Distopia”? Querias dizer “utopia”! Sei alguma sobre o significado das palavras.
- Dionisio, chega! Uma coisa é brincares com isso de vez em quando; agora, tu passas o dia com essas ideias estúpidas na cabeça!
- Mas seria bom! Vivemos com tédio…
- Quantas cervejas bebeste hoje? Vai-te deitar.
- Moira…
- Mas qual Moira? Qual Moira? Vejamos: queres políticos que te enganem, queres ouvir as mesmas músicas na rádio mil vezes por dia, aquele pimba, mil vezes repetidos; queres ver futebol e pessoas a falar de futebol, já agora a ganhar rios de dinheiro. E queres também pessoas menos qualificadas, não é? Porque a média de nada serve! Como foi que disseste? “Eles depois esquecem-se de tudo o que aprenderam?”
- Toma uma uva, estão mesmo boas.
Uma das frutas voa da mão direita de Dionisio e esbarra com a testa de Moira.
Quase tão vermelha como o marido, volta-se para televisão.
- Que gracinha, rei das festas!!!
Dionisio ri-se da frase da mulher.
-  Ainda escrevo um livro. “A Utopia segundo Dionisio”.
- Ora, e porque não? E se for um romance, ainda se torna best-seller! - ironiza Moira - Posso ao menos saber como termina essa estória?
Dionisio ri-se, mais alto do que precisa. Engole outra uva e responde à curiosidade da esposa:
- Não acaba. Cometiam erros e voltavam a cometer; solucionavam-se uns e nasciam outros; cada um por si, quanto mais melhor; o tempo passava… mas não se passava nada. E quem podia gozava! -  eleva o braço direito no ar, segurando um invisível copo de tinto:
- Tchim-tchim!

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Gémeas

Imprimo metade da minha alma num poema,
A única metade que tenho.
Ela lê-o
E então segura-me por completo.

Estação última - 19 Setembro 2014

Estação última

Letra em construção.

Com o ambiente do "Redondo Vocábulo" e de "Que força é essa?" como pano de fundo.

Na velha estação enrolo o cigarro
No fumo contido liberto o desejo
No jornal rasgado vejo o povo escolher:
Estar junto ou sozinho. Como há de viver?

Na fachada cinzenta a sombra demora
No banco já gasto a criança chora
Nos carris compridos o caminho persegue
Se o coração pensa não há boca que o negue

E se esperar um bocado,
se sonhar acordado
com a vida bravia?

Então dormirei descansado
Mais leve é o fardo
Do próximo dia

Drops of Candy - Abril 2014

Drops of Candy

Rascunho quase final de uma letra (falta saber corrigir o inglês)


"Candy lives upon the hill
Where misty clouds pass on by
Writes some letters to Brazil
"There's still time for a last goodbye"

Candy wants the cold away
There is honey but not the bees
So she knows she has to stay
With frozen rivers and naked trees

Candy looks throughout the mountains
Still remembering older times
There were wide gardens with gorgeous fountains
She couldn’t read between the lines

Candy smiles about a flower
Growing slowly on the snow
Winter is gone, has lost its power
Spring is coming from down below

Candy sees the sunny sky
Birds are singing above her head
There is more than meets the eye
“I will be there”, that’s what he said

But until then her eyes will pour,
Sweet drops of Candy"

Abril 2014

If - Quinta-feira 19 Setembro 2013

"If"

A primeira letra a aparecer por aqui.
Fez ontem um ano que foi escrita.
(imaginem uma espécie de "Blowin' in the wind")
Desculpem os erros que aparecerem no inglês...

If you sing, darling if you sing
If you sing, darling if you do
If you sing, my darling, sing it loud
And my heart will listen you

If you smile, baby if you smile
If you smile, baby make it nice
If you smile, my baby smile for me
Only you can break this ice

If you cry, woman if you cry
If you cry, woman clean your tears
If you cry, my woman look at me
I will help you with your fears

If you love, honey if you love
If you love, honey don't pretend
If you love, my honey make it true
Like a love that will not end

Importação

Como tenho outro material espalhado que diz respeito a música mas também está em formato escrito, e porque não tenho dado uso ao outro blog, vou importar o material desse sítio.
Isto incluí esboços de letras, poemas, entre outros,

Boas leituras,
João Santos

segunda-feira, 9 de março de 2015

A Casa no Interior

4 - A Casa no Interior



O som favorito de Ivo era o silêncio. Não era algo que dissesse aos amigos para parecer um conhecedor de todos os outros sons que existiam. O silêncio era o som de que precisava para pensar com clareza, para criar, para escrever. Assim que o ritmo parava, um compasso ordenado disciplinava-lhe o pensamento. Quando as notas se desvaneciam, ruídos coloridos formavam ideias. O silêncio era mesmo o melhor dos sons. Por isso, Ivo sentia-se nas nuvens quando, por volta das duas da manhã, teclava relaxadamente no seu portátil, envolvido numa ausência de som tão poderosa que muitos poderiam considerar claustrofóbica.
O maior desejo de Ivo era criar uma história original. Queria provar aos seus críticos que não era um “fabricante de literatura light” nem uma “impressora de dinheiro para a sua editora”, sendo estes dois dos exemplos mais simpáticos que tinha lido sobre si nos jornais. Também queria desafiar-se a si próprio e aos seus verdadeiros fãs ao escrever uma história de terror, puro e duro. Ainda ninguém sabia da ideia, a não ser Raquel, que fazia parte da editora. Era muito arriscado, principalmente porque fugia da fórmula de sucesso que usara anteriormente. O público adorava o herói dos “Segredos de Bolso”, um agente secreto por conta própria. Este escapava sempre dos inimigos ou das autoridades nas últimas páginas do livro, repleto de ação e suspense. Todos os casos que investigava começavam com uma mensagem colocada num bolso do seu sobretudo, daí o título sugestivo. Com cinco volumes publicados, o sucesso era de tal ordem que já existia uma série de televisão e falava-se de um possível filme, realizado por uma produtora independente inglesa.
Apesar de tudo, Ivo queria correr riscos e como era o único escritor português que enriquecera com a escrita, podia dar-se ao luxo de o fazer. Sem mais impedimentos, bastava iniciar o processo de escrita. Escrever a história de terror que ninguém tinha lido. Rebater todas as más críticas do passado. Seguir os caprichos da sua imaginação, revolvendo do fundo de si mesmo os seus piores anseios e apresentá-los com outros personagens, outros nomes e  outros cenários, mantendo o que fosse verdadeiro como os pilares do horror. Mas começar por onde?
Aqui residia o cerne da questão, pois desde que decidira arriscar no desvio literário, a inspiração abandonara-o. Onde estava o teclar ponderado mas fluído, que fazia a ponte entre o mundo das ideias e o mundo real? Como fugiam da sua vontade os cenários verossímeis onde se movimentavam personagens carismáticos, em intrigas mirabolantes com resolução inesperada? Seria realmente um fabricante de fast food literário, confinado aos desvarios do seu agente secreto?
Ivo conhecia-se e tais receios não eram verdadeiros. Simplesmente não eram. “Talvez”, pensou para si próprio, “talvez uma estória diferente necessite de um método diferente”. Suspendeu a sessão no seu pc, bateu palmas para acender o candeeiro do teto (que nunca funcionava à primeira) e assim que se viu à luz do dia artificial, levantou-se e caminhou escada acima para o quarto. Deixou uma nota junto da mesa-de-cabeceira de Tânia, a esposa que dormia tranquilamente e escolheu uma roupa para o acompanhar num passeio noturno. Invejoso, o sobretudo negro estendia uma manga para esconder o cachimbo de Ivo, uma chantagem que convenceu o seu dono a levar os dois artigos sem mais demoras. Não sendo um fumador compulsivo, o escritor dos “Segredos de Bolso” achava por bem criar uma certa imagem de marca da sua pessoa. Além da afamada “Chaminé de Bolso”, Ivo era conhecido e reconhecido pelo penteado peculiar, um cabelo acinzentado curto que se prolongava em longas suíças nos dois lados da face. Não se sabia ao certo se era o cabelo que era demasiado curto para as suíças ou o contrário, mas o mais correto era afirmar que um fluxo contínuo de cabelos modelava-se na sua cabeça, como se de um capacete uniforme se tratasse.
A ronda noturna e inusitada aparentava para já similaridades com o giro vespertino e rotineiro, não estivesse a casa de Ivo inserida num local pouco frequentado, longe da azáfama de um qualquer prédio no centro da cidade. Também (talvez mais importante) longe de olhares bisbilhoteiros, criadores de boatos da vida alheia.
Ivo seguia na estrada de cascalho que partia da sua garagem, descendo pela curva traiçoeira, junto do antigo carvalho inclinado. Por momentos, pareceu-lhe ouvir o som de um carro, ao longe.
“De súbito, os travões morreram e o condutor, abrindo a porta, saltou assustado para o terreno acidentado, ouvindo o estrondo provocado pelo embate da viatura na terrível árvore negra”, magicou Ivo. Sorriu, pois vira uma das cenas do seu novo livro surgir com naturalidade. Que estilo usaria? Mais direto, sem floreado? Sugestivo? Contado na primeira pessoa? Eram questões cujas respostas só seriam dadas mais tarde. No entanto, aquela primeira faísca fora o suficiente para deflagrar um incêndio, um incêndio de ideias que a sua mente disciplinada organizaria mais tarde, junto do seu pc.
“Olhou para trás para ver se continuavam no seu encalce, mas o nevoeiro cerrado só lhe permitia ouvir rugidos pouco humanos. Levantou-se, ganhando forças ao medo e tentou correr estrada abaixo. O corpo dorido concedeu-lhe uma corrida desajeitada, insuficiente para impedir o aumento da sombra humanoide. Uma mão surgiu das sombras e…” Ivo assustou-se, quando um gato preto se atravessou no meio da estrada silenciosa. Continuou estrada abaixo, recompondo-se do sobressalto e optou por um caminho bosque adentro, visível pelo solo marcado por passadas humanas.
Nesta zona ainda mais isolada, o silêncio era frequentemente interrompido pelo piar das corujas. Ivo guiava-se habilmente por um forte sentido de orientação, auxiliado pelo luar intenso e pelas estrelas estáticas. Uns bons metros depois deteve-se, apreciando a lagoa serena à sua direita, um semicírculo a refletir a imensidão celeste. De dia, o fundo era perfeitamente visível, e a expressão “águas cristalinas” completamente adequada; de noite, o tal efeito refletor ocultava o segredo da profundidade.
“... era apenas um ramo de uma árvore. Os rugidos tenebrosos morreram naquele instante. Desorientado pela fuga e pelo nevoeiro, surpreendeu-se por já não estar na estrada principal e sim num caminho pedestre que terminava numa lagoa. A água borbulhava no centro da lagoa, criando movimentos ondulatórios. Alguma coisa, viva, lutava para respirar.”
Ivo soltou um grito mudo quando reparou que o seu pensamento descrevia agora a realidade. Lutou contra uma sensação paralisadora, e entre a curiosidade e o medo, a primeira saiu vencedora. Entrou tal como estava na água e não teve de andar muito para encontrar o corpo ainda quente de um homem adormecido. Arrastou-o para a margem, libertou-se do sobretudo ensopado para lhe facilitar os movimentos e recorreu às técnicas de reanimação cardiorrespiratória (afinal, aquele curso no Verão servira para alguma coisa).
O homem não reagia como Ivo imaginara; parecia que se encontrava sedado. Não havia sinais de mazelas exteriores, ou assim pareceu numa primeira olhadela: um dos pés do homem estava descalço e os pulsos vermelhos evidenciavam algum tipo de corda que exercera pressão durante bastante tempo. O sangue corria lentamente. O escritor ficou também surpreendido pela indumentária do indivíduo sonâmbulo. As roupas assentavam impecavelmente, indicando que tinham sido feitas à medida. Este pormenor tornava tudo ainda mais bizarro.
Ivo não tinha o telemóvel consigo nem qualquer pessoa a quem pedir ajuda naquele local isolado. A distância de sua casa era suficiente para que Tânia não acordasse com os gritos. Em alternativa, deixava o corpo para trás e correria para casa o mais depressa possível. O escritor optou por levantar o homem adormecido sobre os braços, carregando-o o mais longe que conseguisse, enquanto clamava pelo nome da mulher. Sentia um misto de terror e orgulho, pois comportava-se com uma frieza sublime num quadro assustadoramente surreal.
Os gritos ecoavam na estrada vazia. Ivo parou uns segundos para recuperar o folgo. Já avistava a sua casa e não se via qualquer sinal de que os seus chamamentos tivessem sido ouvidos. A distância era tão curta e ao mesmo tempo longínqua. 
“Da lagoa surgiu um ser pálido, uma réstia de homem num corpo escamoso. Perseguiu o homem assutado, que voltou à estrada desolada”. 
Ivo voltou a carregar o homem, dirigindo-se para casa. Gritava a plenos pulmões e o medo que até então estava sujeito à curiosidade crescia, acompanhado por um sentimento de impotência ao deparar-se com tal situação. “A escolha não fora a mais acertada: o homem estava cercado em duas frentes, pela criatura do lago e pela outra que descera da mansão maldita. Desistindo, caiu de joelhos e começou a chorar efusivamente. Quando os dois seres se aproximaram, o homem tinha já criado uma poça de urina no chão”.
Ivo não desistiria facilmente e quando chegou junto do antigo carvalho, as luzes do seu quarto acenderam-se. O vulto de Tânia abriu a janela, fez um gesto de levar as mãos à cara e desapareceu. Segundos depois, o andar do rés-do-chão iluminava-se e a mulher de Ivo corria envolta num robe salmão: perplexa por um lado, mas por outro consciente do que havia a fazer. Vinha a falar ao telefone todo o percurso, dando indicações sobre o que via no momento. Ivo pediu o telefone e Tânia dirigiu-se para o homem que parecia morto, mas não estava. Os olhos da sua mulher faziam um sem número de perguntas, mas os de Ivo devolviam apenas um “não sei, mas vai ficar tudo bem”.
“Os seres nada fizeram. O homem limpou o ranho e as lágrimas e começou a rir. Eram gargalhadas de felicidade quase pura. Quase, porque o pavor não o abandonara e o desconhecido continuava ao derredor, na forma das duas criaturas fantásticas”.
Foram precisos quase quinze minutos para que a ambulância chegasse. Na espera, Ivo ligou para o vizinho mais próximo que tinha, José, mas este respondeu exaltado e pior ficou quando Ivo lhe disse que estava na sua casa. No entanto, não deu nenhuma explicação do porquê desse agravamento no seu estado.
 Tudo aquilo era um pesadelo, uma partida sem graça. A sua mulher estava mais afetada que ele próprio, ou talvez estivessem os dois a sentir o mesmo. Apenas o expressavam de modo diferente. Enquanto Tânia criava uma ladainha, misturando preces divinas com monólogos sobre o sucedido, Ivo entrara em casa buscando outro cachimbo, pois a sua fiel “Chaminé” estava no sobretudo junto à lagoa.
Ao fim do quarto de hora arrastado, a ambulância, um carro da polícia e o vizinho de Ivo travaram as suas viaturas. Um casal de socorristas voou para junto do homem inconsciente, um polícia para junto de Tânia e outro polícia correu com José para a entrada de casa, onde Ivo surgia com um cachimbo aceso.
“Havia um terceiro ser e mesmo com o nevoeiro cerrado sobressaiam dois focos luminosos vermelhos. Era mais humano no aspeto que as restantes criaturas, exceto no olhar brilhante. O homem esteve especado durante um breve instante e então apercebeu-se que não eram olhos humanos que o olhavam, mas olhos artificiais, robóticos, iluminados de dentro, como dois pequenos faróis escarlates, sobre um fundo branco estranhamente sereno.
- Precisamos de falar - disse a figura misteriosa”.
O polícia começou lentamente a sua explicação, mas José não aguentou e falou por cima. Havia um assassino à solta.
                Ivo quase desmaiou. O seu estômago estava às voltas, quente; a sua testa fria, repleta de suor e sentia esse efeito também nas suas mãos. Nunca tivera os lábios tão secos. Ivo pensou também que, se o coração continuasse a bater daquele modo, seria vítima do terror puro. Tinha de sair dali.
                Chegaram mais carros da polícia. Dois deles escoltavam a ambulância, que antes de fechar portas deixou o diálogo dos dois socorristas pairar no ar. O homem fora envenenado.
                “- Não irás morrer - o ser de olhos luminosos falava para o homem, amarrado numa cadeira da sala, dentro da mansão de onde tinha tentado fugir. As duas criaturas, inexpressivas, estavam de pé junto ao humano aterrorizado - Sofrer sim. Oh, isso sim - segura na mão esquerda uma ampola cinzenta - Sofrer faz parte da natureza humana. Mas matar… eu sou incapaz de fazer tal coisa. Não serei assassino de ninguém. Repulsa-me. Agora, não se pode deixar um ser desobediente por aí à solta. Jamais! Enquanto eu cá estiver, os castigos aplicam-se. Cada um recebe na perfeita medida do seu ato.
-          Mas eu… eu… - o homem soluçava incessantemente - eu não fiz nada, eu juro, eu não fiz nada, não fiz, não fiz…
-          Não fez, não fez - o ser sombrio soltou uma gargalhada sonora - meu caro, …”
                Ivo segurava a mão de Tânia com todas as forças que lhe restavam. Nem sequer o facto de seguirem no banco de trás de um carro da polícia lhes trazia segurança naquele momento. Minutos antes, ele e a sua mulher podiam ter sido atacados. Podiam ter sido mortos. Tão simples como isso. Ninguém saberia de nada. Talvez só no dia seguinte. Seria notícia de abertura do telejornal.
                Iam para casa de uma tia afastada de Tânia. Teriam duas horas de viagem pela frente. Não se importavam nada em não dormir: aliás, fariam de tudo para se manter acordados, alerta. Ivo sentia-se observado durante toda a viagem. Um dos polícias olhava constantemente pelo espelho retrovisor. Ivo interpelou o polícia, que se desfez em desculpas. Era fã dos “Segredos de Bolso” e não resistiu a mostrar o seu apreço pelo brilhante escritor. Tânia pediu que deixasse o marido em paz, mas Ivo encontrou ali um escape e respondeu a todas as questões do agente da autoridade. A viagem passou mais depressa.
                A meio do percurso, despediram-se de José, que continuou acompanhado pela escolta policial. Tonturas fortes causavam uma desagradável sensação de enjoo ao atordoado escritor.
                “... precisamente por não ter feito nada é que deve ser castigado - Um dos seres humanoides forçou o prisioneiro a abrir a boca, enquanto o chefe do trio misturava o conteúdo da ampola num copo de água. Ao mesmo tempo, despejou um líquido vermelho, cuja cor e textura eram semelhantes a sangue, noutro copo para si mesmo. Deu o copo com a ampola a um dos humanoides, que se dirigiu ao prisioneiro lentamente e elevou o outro à altura da cabeça, sorrindo.
- Saúde!”
- Vocês estão bem? - a tia de Tânia abraçou a sobrinha efusivamente - Meu Deus, que horror! Tenho estado a ver as notícias, horrível, horrível, tentei ligar para ti…
Ivo cumprimentou a anfitriã e logo perguntou pela casa de banho. Abriu a torneira de água fria e lavou a cara repetidamente, lançando-a com mãos trementes.
“O homem gritou até perder a voz. De seguida começou a ter fortes convulsões e finalmente acalmou-se, não por se esgotarem as forças mas porque uma qualquer parte de si morrera com os efeitos do líquido que ingerira. Exteriormente, era um sonâmbulo com olhos semicerrados; interiormente, um ser que apenas reteve as funções motoras. Os sentimentos e os pensamentos eram conceitos do passado e estariam armazenados na sua memória para recordar um dia mais tarde. Isto, claro, enquanto a memória funcionasse.
- Volte para casa. A sua esposa já deve estar a estranhar a sua ausência – estendeu uma faca de cozinha ao sonâmbulo, que a agarrou com força, em pleno contraste com o comportamento dos outros membros do corpo. O homem assentiu com a cabeça e regressou a pé ao seu lar.”
O escritor massajou as têmporas com o indicador e o dedo médio de cada mão. Pegou na toalha áspera e secou a face cansada. A cor natural do rosto voltava gradualmente.
Tânia e a sua tia reconfortavam-se com uma lasanha do dia anterior e Ivo sentou-se à mesa para desfrutar daquele aconchego ao estomago. Na televisão, o pivot jornalístico entrevistava o chefe das autoridades, dando conta que uma das vítimas sobrevivera ao ataque e ajudava na elaboração do retrato robot. O rosto de uma mulher anafada, na casa dos trinta e cabelo curto foi apresentada no ecrã, ao lado de uma faca de cozinha. A arma do crime, portanto.
A noite mais longa das suas vidas morreu com o raiar do sol, anormalmente quente para aquela altura do ano. Tânia ainda dormia quando Ivo, acendendo o cachimbo, saiu do quarto e procurou a janela da sala para fumar. A tia de Tânia cirandava casa fora, acompanhada pelo telemóvel. Disse "bom dia" apressadamente e continuou a conversa. Falava, claro, do assassino à solta. A televisão não estava ligada, mas o rádio anunciava novos desenvolvimentos.
“O sonâmbulo pegou na chave e entrou em casa. Tinha a faca atrás das costas como se fosse entregar um presente de aniversário a uma criança. Não tinha quase nada para disfarçar porque não sentia quase nada. A sua mulher devia estar a dormir no quarto. Avançou para a porta branca”.
Ivo ficou especado no alpendre da reconfortante casa. Era a primeira daquela povoação, a mais antiga de todas. Nesta zona, o trânsito era reduzido, quase nenhum. Em comparação com o que corria junto à sua própria casa, parecia interminável. Um carro negro passou lentamente e Ivo sentiu um calafrio na espinha. Esperou que o carro saisse do seu campo de visão e voltou a entrar em casa.
Uma estranha ideia começou a formar-se na mente do escritor. Via-a vivificar-se como se um relógio se estivesse a materializar à sua frente. As peças encaixavam e trabalhavam, as rodas dentadas empurravam outras, os ponteiros batiam uma pulsação ordenada. Ivo reconhecia aquele carro. Mas de onde? Não era o carro em si. Ivo sabia…
                - Conseguiste dormir alguma coisa?
                Ivo assustou-se com a pergunta de Tânia, olhando-o petrificada. Não se refizera da noite anterior. O escritor abraçou-a e encaminhou a mulher para o sofá, onde se detiveram em silêncio até que a anfitriã desligou o rádio.
                - Precisamos de um pouco de silêncio.
                Clic.
                Era isso.
                Ivo já sabia como reconhecia o carro. Não pelo seu aspeto, mas pelo som. O som que ouvira junto do velho carvalho e que na altura lhe parecera produto da sua imaginação. O som que agora crescia demoradamente. 
                O carro voltava para trás.
                A tia de Tânia começou a reclamar com o som da viatura, mas Ivo fez sinal para que se calasse. Tanto ela como Tânia ficaram espantadas, mas depressa assentiram e afastaram-se o mais possível da porta.
                “Toc toc toc. O sonâmbulo bateu à porta. A sua mulher perguntou “Quem é?” e pelo nome do seu marido.
                  Toc toc toc. Outra vez.
                  Levantou-se e pensou se havia de abrir ou não a porta. Pegou no telemóvel”.
                - Po-polícia! – sussurrava a tia de Tânia pelo telemóvel, enquanto recitava a morada de sua casa.
                 Toc toc toc. Continuavam a bater. Três pancadas secas, ritmadas. 
                  Ivo susteve a respiração.
                “Toc toc toc. O telemóvel não apanhava rede. Decidiu abrir a porta. Só podia ser o ser marido. Talvez estivesse... bêbado? Não ele nunca ficava bêbado. Mas tinha de ser ele. Quem mais podia ser? 
                Abriu a porta.”
                Pararam de bater. O carro arrancou a alta velocidade e uma camada de pó cresceu do chão, visível da janela da cozinha. Ivo decidiu abrir a porta.
                Não viu ninguém.
                A polícia chegou assim que a poeira assentou.
                Ivo, Tânia e a sua tia esperavam na esquadra com familiares de uma das vítimas. O escritor recuperava alguma da sua frieza e estava atento às conversas alheias, em busca de qualquer pista que o acalmasse. Entre tanto medo e dor havia sempre alguém que reconhecia o famoso escritor e os pedidos de autógrafos eram constantes. Ivo precisava de desanuviar. Foi quando deambulava pelos corredores, junto à máquina do café, que escutou um diálogo vindo de uma porta entreaberta.
                - … vítimas em cativeiro na casa dela. Um deles fugiu e libertou os restantes – ouviu-se o som de bolos duros serem mastigados – a tipa deve-se ter passado.
                - E foi atrás deles? Isso é muito arriscado!
                - Arriscar o quê? Se eles andassem por aí e contassem tudo, acabava-se o jogo dela.
                - Jogo?
    - Um jogo maluco – fez-se uma breve pausa – Ela era totalmente doida. Tinha uma coleção de ... 
    - De quê? 
    Do outro lado da porta, o escritor evitava fazer qualquer som. 
    - De “bonecos humanos".
                - Bonecos? - respondeu  a segunda entidade, perplexa.
                O som dos bolos duros reapareceu até que a primeira figura retomou a conversa.
                - Todas as vítimas estavam vestidas com roupa feita à mão. Encontraram miniaturas iguais ao vestuário das vítimas. Acessórios a combinar: sapatos, chapéus, meias... tudo. Vê isto - o som das teclas do computador parecia gigante ao sair para o corredor quase deserto - A Andreia cruzou dados e descobriu que o velho alfaiate recebeu clientes com bastante regularidade nos últimos meses.
                Um novo som saiu da sala e Ivo identificou-o como sendo o scroll de um rato de computador.
                - Minha nossa…
                - Estranho, não é? – o amachucar de um papel indicava o fim dos bolos – Bem, só o facto de ir a um alfaiate nos dias de hoje já é doença que chegue.
                O segundo interveniente riu e comentou de seguida:
                - Ou isso ou tem os bolsos cheios.
                A dupla riu em conjunto. Ivo voltou sorrateiramente à sala de espera.
                Ao fim de uma semana de buscas foram encontradas as restantes vítimas. Num comunicado oficial, eram seis os indivíduos que foram feitos prisioneiros na cave da mulher monstruosa. Os vizinhos nunca suspeitaram de nada. Diziam que era boa pessoa. 
                As autoridades estavam intrigadas com o desaparecimento da mulher e no início surgiram muitas pistas falsas. O perímetro das buscas foi alargado.
                Foi também ao fim de uma semana que Ivo quis regressar à sua casa isolada. A polícia era contra, pois receavam que a criminosa voltasse ao local do crime. Obviamente, Tânia e a sua tia partilhavam da mesma opinião. Mas o escritor tinha já a sua estória completamente formada na sua mente e era urgente voltar ao seu refúgio para transportá-la para o computador. Ao fim de longas conversas, o escritor teve o privilégio de receber dois seguranças privados, a trabalhar por turnos, de modo a estarem com ele para que Ivo pudesse, pelo menos, escrever o esqueleto do seu novo livro. Não era o que desejava, mas era melhor que nada e dada a situação, as coisas até corriam de feição. Não fossem os recentes acontecimentos e Ivo poderia nunca ter inspiração para um livro de terror. Tinha de ver o lado positivo da coisa.
             Tânia decidiu ficar em casa da sua tia e ansiava que o marido voltasse são e salvo no final da semana.
No silêncio da primeira noite de regresso a casa, um novo detalhe veio à mente do escritor. No noticiário, nunca se fizera referência ao facto da vítima que Ivo encontrara ter sido amarrada. Se os indivíduos estavam drogados, para quê amarrá-los com tanta violência? Ivo tinha também feito a descrição do carro negro. A polícia disse que a mulher doentia não tinha carta de condução, nem nenhum vizinho possuía um carro com essa cor ou dessa marca. Seriam duas pessoas diferentes?
Ivo foi refrescar o rosto à sua casa de banho. Os vigilantes procediam à troca de turnos e cumprimentaram-no do fundo do corredor. O escritor encostou a porta e continuou a banhar-se de frente ao espelho. Secou-se com a sua toalha macia e voltou ao computador.
Estava quase. A sua nova obra-prima, ou a estrutura principal da mesma, fechava-se com o final macabro.
TUM.
Um estranho ruído esbateu-se junto da porta de entrada. Ivo volveu o olhar mas o campo de visão era minúsculo. 
TUM.
Um segundo ruído, semelhante ao primeiro, fez saltitar o coração de Ivo. Levantou-se da cadeira.
Ao aproximar-se da entrada, discerniu um vulto imenso que segurava um sapato na mão. Os corpos dos dois vigilantes preenchiam o chão, cada um marcado com uma mancha escarlate no pescoço. A figura volumosa era uma mulher, com um cabelo curto ruivo. Da sua face escorriam lágrimas de alegria.
- Oh, veja! O sapato ainda aqui estava. Este fica para recordação!
 O escritor susteve a respiração. Viu o sapato e reconheceu-o. 
 Ivo engoliu em seco. 
- Não gosto de si – a expressão de felicidade da mulher transformou-se num ápice – Não gosto das suas suíças. Você ...
A mulher, completamente transfigurada, avançou para Ivo.
- ... você mete-me medo.
“O braço moveu-se com uma velocidade impressionante. O bramido terminou assim que a faca saiu do pescoço da vítima. Quando se apercebeu do que acontecera, o homem soltou uma última lágrima de tristeza. Ficou sozinho. Sozinho, com o seu amado silêncio.
Fim”.

Terminado em 09/03/15