terça-feira, 13 de outubro de 2015

Da escrita

Ele olhava-as delicadamente. Eram invisíveis e belas. Moravam na sua própria casa, de infinitos andares. Cada uma tinha o seu próprio espírito e quando se juntavam, ordenadas, materializavam um conceito. Se formavam fila, umas atrás das outras, ai já apresentavam paisagens, vales de memórias lentamente reveladas, descreviam homens de hodiernos fatos e cabelo bem aparado ou homens em trapos e capilar revoltoso. E, por mérito do artesão ou do observador da obra, diziam não só o que lá estava como o que não estava; diziam duas coisas diferentes ao mesmo tempo; não faziam muito sentido ao início e no final continham em si o significado de tudo (onde se inclui o que se sabe e o que não se sabe e ainda aquilo que se sabe, mas não se sabe dizer).
De que falavam elas naquele momento? O obreiro dispô-las cuidadosamente, alterando-as de quando em quando, buscando no intelecto um ordenamento conciso para a efusifivade desordenada do coração. Os simples extrairiam o signficado mais directo e um outro mais profundo, alimentado por experiências ímpares; os cultos abarcariam o quadro geral, mergulhando depois no microcosmos dos detalhes, fariam comparações de textos de outros autores que escreveram sobre o mesmo assunto. O importante é que tanto uns como outros retirassem entretenimento e ensinamento do produto final.
Ganhavam forma física e não perdiam a sua beleza. Aliás, seriam ainda mais belas, com novos contornos intencionalmente delineados, emanando uma palete colorida e cómoda, pois este  autor não inventava novas palavras. Inventava novos assuntos? Não foi já tudo escrito? De que valia o seu esforço, mero redizer de fenómenos cíclicos? As incertezas alastravam-se pelas vias da expressão, bloqueando-as. Por momentos, o artista reduzia-se a um poço de insegurança, esquecendo-se de que a Arte vive por si própria, não impondo mas expondo. Os donos dos entraves criticariam a repetição de filas ficcionais, clamando a sua substituição por indicações objectivas e úteis. “Felizmente”, recordou-se o autor, “da Arte podemos dizer apenas: porque sim.”
Em jeito de homenagem, juntou-as como lhe deu maior gozo, e as letras, como lagartas, tornaram-se palavras (como casulos) e findaram em frases, parágrafos, voando, como borboletas, em longos textos de mirabulantes dizeres. Contrariando o ser vivo a que foi comparada, a Escrita era um ser imortal, existindo após o pó da última estrela se dissolver na escuridão dos tempos.
Um sabor agridoce roçou os lábios do escritor, feliz pela construção do seu escrito mas saudoso por deixá-lo sair, rumo ao mundo, como um filho crescido.


João Malcher Santos
13 Outubro 2015

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