Apraz-me falar de Dionisio.
Sigo-lhe a vida por uns tempos e concluo que um dia chega para o conhecermos. Pode ser hoje, por exemplo.
Não chove. Também não se vê o sol, há um céu mal pintado de nuvens longas, arrastadas sem vontade.
Com vontade, acorda Dionisio. Ele é cheio de vida, apesar da vida estar vazia dele. Por ser único, apraz-me falar de Dionisio.
Os críticos debatem a nova obra de Pierre Cars na televisão, no habitual programa da manhã. Dionisio faz zapping, sem encontrar algo de interessante: novamente o programa de teoria política, a análise do campeonato de xadrez noutro canal, o último capítulo da explicação detalhada dos aunerismas congénitos num terceiro canal. Dionisio para sempre no canal de culinária, observando a preparação de um pequeno almoço saudável. Ri-se, ao mesmo tempo que engole um pedaço gorduroso de bacon, previamente revestido com a gema do ovo estrelado que está no prato.
A sua mulher já está levantada, repetindo a tarefa de corrigir mais um exame do secundário. Retira os óculos de ver ao perto em cada pausa que faz, massajando os olhos azuis. Dionisio aproxima-se com um beijo de bom dia, recebido com cansaço mas devolvido com agrado.
- Este ano estão um pouco piores - afirma Moira, erguendo as finas sobrancelhas - Neste momento, a média das notas é de dezasseis valores.
- Dezasseis é ótimo - devolve o marido - Eles depois esquecem-se de tudo o que aprenderam.
- Não comeces com isso. Precisamos do melhor de cada um deles.
- Há vida para além das notas.
- Há, claro que há, mas para a vida que querem, têm de ser mais ambiciosos.
- Bah! Qualquer dia não temos ninguém que nos varra as ruas! - graceja Dionisio a caminho do chuveiro.
Moira fica em silêncio, marcando com um suspiro o regresso ao trabalho.
Dionisio canta alto no duche. É um hábito antigo, libertador, odiado pelo vizinho do lado. São dois problemas juntos: o desafino da voz e as letras brejeiras. Esse vizinho comenta com a sua mulher, quando a cantoria começa: “Que mal-educado!” e ela diz “O que será que a mulher viu nele!”. Moira viu a extravagância com olhos da mocidade; hoje vê algumas graçolas, as suficientes para manter o casamento. Pouco se alterou no modo de ser do marido. Ao fim e ao cabo, Moira não é fiandeira do destino.
Dionisio segue para a rádio, o seu emprego, uma rádio pouco convencional. As músicas nacionais são “pimba” e as restantes pop barulhenta, sem substância. Exaltam ao deboche, ao sexo desenfreado, às “parties” e “after-parties” e a um sem número de assuntos sem interesse. Mas como há um Dionisio, há também ouvintes, encantados com o bizarro apresentador. Ele é passar as referidas músicas, ele é entrevistar quem não deve, como o guionista da última novela, um tipo de programa transmitido apenas em canais privados. “Sandra vai fugir de casa e lutar pelo seu sonho: ser modelo fotográfico!”. E riem os dois, entrevistador e entrevistado.
Outro hábito de Dionisio causa má impressão: buzina quando o carro da frente cumpre o limite de velocidade, ultrapassando-o em manobras perigosas. Uma vez foi repreendido pela polícia e Moira repreendeu-o também, obrigando-o a dormir no sofá. Outra vez conseguiu subornar o polícia, secreto ouvinte da rádio, com ajuda de uma grade de minis que levava no porta bagagens.
Almoça como um animal. Nem respeita a roda dos alimentos. Onde estão as doses diárias recomendadas? Só ingere hidratos de carbono, açucares e pouco mais. Ao terminar, fuma. Não deixou o vício, nem quando a sociedade lhe deu a mão, mediante vários incentivos fiscais. Por incrível que pareça, nem todos os nossos impostos são bem usados.
Sai da rádio, liga a Moira. A mulher cumpre o intervalo das aulas, ouvindo Dionisio dizer que chega tarde a casa. Um “trabalho noutra rádio”.
- Uma ajuda ao Ricardo, lá sobre os assuntos dos migrantes.
- Não chegues tarde - responde Moira, secamente.
A sua mulher sabe muito bem quem são os “migrantes”: desportistas num pavilhão decadente, correndo atrás de uma bola num desporto erradicado, o futebol. E o dinheiro que fazem! Claro, existem aqueles velhos defensores das virtudes do desporto para o corpo e uns quantos efeitos sociológicos, da comunhão dos grupos. Convenhamos, pouco mais que isso se aproveita.
E no fim do jogo? Não importa o resultado, tudo acaba em copos: os vencedores mantêm viva a vitória, os perdedores afogam-na e os empatados empatam o tempo, bebendo.
Chega Dionisio empatado a casa, vermelho, rindo dos próprios soluços. O frigorífico estende-lhe um chamativo cacho de uvas e Dionisio leva-o para sala.
Está sentado no sofá, todo torto, tem sorte a mulher não apresentar queixa. Moira concentra-se ao máximo no debate político, gente humilde, transparente, em quem se pode confiar.
- São uns tótós, não tiram nada para eles! - comenta Dionisio.
- Tens noção do que dizes? Palavra de honra…
- Não tiravas, não?
- Acaba lá com essas coisas, se faz favor. Esta gente serve-te!
- Anda lá, Moira, estou a brincar!
- Não sei, às vezes assusto-me com essas brincadeiras.
- Moira, então, isto é tudo um exercício mental que faço. Não é o que tu dizes, para fazer o exercício mental?
- Ah, queres fazer um exercício mental! - a mulher desliga o televisor - Podes explicá-lo, estou curiosa em ouvi-lo.
Num arroto monumental, Dionisio limpa a voz galhofeira.
- Imagina que os políticos roubavam, que o dinheiro dos nossos impostos desaparecia; imagina que na rádio não ouviamos essa treta to jazz, da música clássica, do rock “bom” (sempre músicas diferentes, não dá para fixar nenhuma); imagina que tinhamos programas de jeito, onde uma pessoa se divertia a ver cantores portugueses e se comentava a bola. Queres ver xadrez e documentários? Não era considerado serviço público; imagina, imagina, que belo seria o mundo, se vivessemos só para hoje!
Moira fecha a boca, aberta pelo espanto, inspira para trazer ar e expira o que não faz falta.
- Ok, isso é uma distopia tão imbecil, mas tão imbecil e horrível…
- “Distopia”? Querias dizer “utopia”! Sei alguma sobre o significado das palavras.
- Dionisio, chega! Uma coisa é brincares com isso de vez em quando; agora, tu passas o dia com essas ideias estúpidas na cabeça!
- Mas seria bom! Vivemos com tédio…
- Quantas cervejas bebeste hoje? Vai-te deitar.
- Moira…
- Mas qual Moira? Qual Moira? Vejamos: queres políticos que te enganem, queres ouvir as mesmas músicas na rádio mil vezes por dia, aquele pimba, mil vezes repetidos; queres ver futebol e pessoas a falar de futebol, já agora a ganhar rios de dinheiro. E queres também pessoas menos qualificadas, não é? Porque a média de nada serve! Como foi que disseste? “Eles depois esquecem-se de tudo o que aprenderam?”
- Toma uma uva, estão mesmo boas.
Uma das frutas voa da mão direita de Dionisio e esbarra com a testa de Moira.
Quase tão vermelha como o marido, volta-se para televisão.
- Que gracinha, rei das festas!!!
Dionisio ri-se da frase da mulher.
- Ainda escrevo um livro. “A Utopia segundo Dionisio”.
- Ora, e porque não? E se for um romance, ainda se torna best-seller! - ironiza Moira - Posso ao menos saber como termina essa estória?
Dionisio ri-se, mais alto do que precisa. Engole outra uva e responde à curiosidade da esposa:
- Não acaba. Cometiam erros e voltavam a cometer; solucionavam-se uns e nasciam outros; cada um por si, quanto mais melhor; o tempo passava… mas não se passava nada. E quem podia gozava! - eleva o braço direito no ar, segurando um invisível copo de tinto:
- Tchim-tchim!
Sem comentários:
Enviar um comentário