Os Cadernos de Malcher
quarta-feira, 15 de junho de 2016
Texto solto - adolescente
E via nela o eterno fascínio da minha adolescência, a paixão pela forma, volume e fragância, esquecido do que realmente nos podia unir. Na realidade, ela era como um magnífico piano, instrumento que nunca aprendi a tocar.
Texto solto - tempo
Usamos certos dias como marcos da nossa existência, tornando o fluxo contínuo do tempo em variáveis discretas ilusórias. O passado transforma-se num álbum de fotografias que recorremos de tempos a tempos para recordar não só o momento retratado, como todos os outros que o rodeiam. E quando o fazemos, já não olhamos para quem fomos e sim para o resultado de uma memória mais ou menos difusa, manipulada pelos caminhos do presente. E o futuro? É só o momento que nunca chega e se chega não o vemos partir.
domingo, 10 de janeiro de 2016
Alumia
Cheirava a vida.
Tocou ao de leve na ombreira da porta, enriquecendo-lhe as cores. A porta fechou-se com cuidado, escondendo em casa os seus anseios.
Desceu para a chuva bem ritmada. Encontrou espaços secos de chão e usou-os para chegar ao automóvel.
De um lado para o outro e outra vez para o primeiro lado. Só a música rompeu o feitiço dos limpa para-brisas. Mas todos os pensamentos aconchegavam-se na pele, deixando-a paralisada. E era como se o mundo inteiro estivesse parado.
O mundo andou. Azuis e cinzentos desfiguravam pessoas, animais, casas, sinais de trânsito. Despesas, zangas, constipações, estar apresentável sem ter tempo para o estar, adicionavam tonalidades tristes ao cenário da viagem.
Para que se abrisse um caminho, juntou os faróis à sua própria luz. Brancos e dourados vivificavam os sonhos inomináveis dos transeuntes, erguendo as cabeças para conhecerem a dona do encantamento. Nesse instante, ela já ia longe.
Ouvia os risos e os gritos, a correria impaciente. Passou para a sala e elas dispararam na sua direção, rindo também. Ela e a sua assistente transformavam a sala num atelier enquanto as crianças ajeitavam almofadas coloridas.
As folhas de papel eram brancas como a neve; havia tintas, belas e adormecidas, bem como lápis de cor pequenos, médios e grandes; os alunos mais distraídos ficaram nas cantorias e os demais, que trabalharam o tempo todo, estavam quase a terminar a tarefa.
Saíram no meio de beijos e abraços, despedindo-se de mais uma aula. Cada criança guardava o pedaço de luz da sua professora luminosa. Esse pensamento acompanhou-a durante os turnos seguintes. Querendo, por vezes sem sequer querer, transbordava a luz para cada canto da sala.
O almoço desaparecia lentamente do prato, perdendo terreno para as conversas entre colegas de trabalho. Espreitou o sol e todos se levantaram, admirados de o ver por ali. Ela saudou-o e este brilhou um pouco mais, um brilho aberto de orelha a orelha.
Voou a tarde solarenga. Apagavam-se as luzes, sobrando a luz dela, a luz suficiente. Por momentos, a sua candeia esmorecia. Permitia que acontecesse, de quando em quando e somente quando estava sozinha. Aí fechava os olhos, molhando-os. Limpava pensamentos pesarosos, lixava saliências mal tratadas. Todos eles espalhavam sombra, pois as ondas luminosas, mesmo moribundas, cansavam a escuridão.
Volveu a casa com compras necessárias. Em boa verdade, agarraram-se uns apêndices, caprichos de gula bem comportada. Antes, esgotou as pretas em troco contado, acolheu o recibo quente e agradeceu à “funcionária X” o serviço bem aviado.
Amolecia o arroz no tacho, dourava os bifes no grelhador, amanhava a salada na saladeira, munindo-a de aromas com a ajuda de azeite, vinagre e sal. Os orégãos, mudos, mantiveram-se sossegados. Tinham tempo para ser úteis mais tarde.
Saltitou entre feridos, cartões vermelhos, risos de grupo, violações, paixões, vinganças, tempestades, iguarias, cães e gatos, candidatos ao sítio errado e estacionou na despretensiosa vista sobre Santorini. Mergulhou em prédios brancos de telhados cor de mar, encostou-se às ondas cor de telhados. Dormitou nas lojas apinhadas de turistas, sedentos de lembranças taylorizadas.
Matou os sons da televisão com um pressionar dormente no comando. Ergueu uma das cidades invisíveis, absorveu-a e piscou o olho ao autor cubano, tornado italiano, inquirindo o leitor dentro da primeira orelha do livro.
O reflexo, pronto para dormir, bocejou duas vezes. No final de cada dia recitava a mesma palavra.
“Alumia!”
João Malcher
10 de Janeiro de 2016
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
Rugas e rebuçados
Era mais uma tarde fria, como só as tardes de inverno sabem ser. Um pequeno plano de luz convidou uma senhora idosa e uma criança a sentarem-se no banco de jardim. Aquele lugar era um refúgio de luz e calor (calor não, era apenas menos frio).
Como de costume, a senhora, conhecida como “avó”, retirava de um dos seus sacos um pedaço de pão rijo. A criança, chamada de “neto”, recebia o manjar e debatia-se para dividi-lo em pedaços mais pequenos. Os pombos eram menos que o costume, mas a luta pelo alimento era vivido do mesmo modo.
- Oh vó, porque é que os pombos não dividem a comida? Não gostam uns dos outros?
- Oh filho, não te preocupes, eles comem bem. Já viste que gorduchos estão!
Um casal estrangeiro seguia uma criança estrangeira, que por sua vez seguia uma bola cor-de-rosa. Percebia-se logo que eram estrangeiros: eram altos, loiros e até o andar era diferente. Os pais chamavam a filha com aquele falar engraçado e por ser engraçado o neto ria. A avó ria por ver o neto rir, até este se tornar sério e fazer mais uma das suas infinitas perguntas.
- Oh vó, como é que a menina já sabe falar o inglês?
- Oh filho, os pais deles falam inglês e ela de tanto ouvir aprende.
- Eu oiço inglês e não aprendo - queixou-se o neto.
- Mas a menina ouve desde bebé.
- Então se eu ouvisse chinês desde bebé agora falava chinês?
- Provavelmente…
- Isso é o quê? “Provalmente”?
- Quer dizer que sim, pronto.
- Então se eu ouvisse muito muito chinês em pequeno agora tinha os olhos assim?
O neto puxou a pele junto dos olhos em direção às orelhas, com os indicadores. A avó riu.
- Não, isso não! Olho o teu avô Baltasar, fala muitas línguas e tem os olhos redondos.
- Hum, pois é.
O frio abraçava a avó e o neto, mesmo por debaixo dos casacos, cascóis, luvas, gorros, botas e embaciava os óculos da avó.
- Vamos andando que está a ficar tarde e a avó ainda tem de fazer o almoço para amanhã.
- Espera, vó! Só mais um bocadinho!
- Amanhã vimos cá outra vez. Vamos lá.
Cabisbaixo e de braços cruzados, o neto procurou uma pedra que pudesse pontapear. Mas até as pedras deviam ter fugido do frio, porque não se via nem uma.
- Oh vó!
- Diz, filho.
- Os estrangeiros também pensam como nós?
- Penso que sim, porquê?
- Se eles falam outra língua, podiam pensar coisas diferentes.
- Oh filho, estás a ser muito filosófico.
- “Fisolofico”? Isso é o quê?
- É uma pessoa que pensa muito. Mas conta lá, como é que uma pessoa estrangeira pensa em coisas diferentes?
- Hum… olha, o pai diz que só os portugueses dizem “saudade”. Os estrangeiros não pensam na saudade pois não?
- Oh filho, nem sei bem. Devem pensar… afinal de contas, são pessoas como nós.
Todo o parque era agora sombra. O frio já não tinha ninguém para abraçar a não ser a avó e o neto. A avó descobriu rebuçados de mentol no bolso do casaco, oferecendo-os ao neto. Desembrulhando um dos rebuçados, o pequeno sorriu, um sorriso limpo da idade. A avó mostrava o seu sorriso mais antigo, enrugado, mas que nunca se gastava.
João Malcher - 23 de Dezembro de 2015
terça-feira, 13 de outubro de 2015
Da escrita
Ele olhava-as delicadamente. Eram invisíveis e belas. Moravam na sua própria casa, de infinitos andares. Cada uma tinha o seu próprio espírito e quando se juntavam, ordenadas, materializavam um conceito. Se formavam fila, umas atrás das outras, ai já apresentavam paisagens, vales de memórias lentamente reveladas, descreviam homens de hodiernos fatos e cabelo bem aparado ou homens em trapos e capilar revoltoso. E, por mérito do artesão ou do observador da obra, diziam não só o que lá estava como o que não estava; diziam duas coisas diferentes ao mesmo tempo; não faziam muito sentido ao início e no final continham em si o significado de tudo (onde se inclui o que se sabe e o que não se sabe e ainda aquilo que se sabe, mas não se sabe dizer).
De que falavam elas naquele momento? O obreiro dispô-las cuidadosamente, alterando-as de quando em quando, buscando no intelecto um ordenamento conciso para a efusifivade desordenada do coração. Os simples extrairiam o signficado mais directo e um outro mais profundo, alimentado por experiências ímpares; os cultos abarcariam o quadro geral, mergulhando depois no microcosmos dos detalhes, fariam comparações de textos de outros autores que escreveram sobre o mesmo assunto. O importante é que tanto uns como outros retirassem entretenimento e ensinamento do produto final.
Ganhavam forma física e não perdiam a sua beleza. Aliás, seriam ainda mais belas, com novos contornos intencionalmente delineados, emanando uma palete colorida e cómoda, pois este autor não inventava novas palavras. Inventava novos assuntos? Não foi já tudo escrito? De que valia o seu esforço, mero redizer de fenómenos cíclicos? As incertezas alastravam-se pelas vias da expressão, bloqueando-as. Por momentos, o artista reduzia-se a um poço de insegurança, esquecendo-se de que a Arte vive por si própria, não impondo mas expondo. Os donos dos entraves criticariam a repetição de filas ficcionais, clamando a sua substituição por indicações objectivas e úteis. “Felizmente”, recordou-se o autor, “da Arte podemos dizer apenas: porque sim.”
Em jeito de homenagem, juntou-as como lhe deu maior gozo, e as letras, como lagartas, tornaram-se palavras (como casulos) e findaram em frases, parágrafos, voando, como borboletas, em longos textos de mirabulantes dizeres. Contrariando o ser vivo a que foi comparada, a Escrita era um ser imortal, existindo após o pó da última estrela se dissolver na escuridão dos tempos.
Um sabor agridoce roçou os lábios do escritor, feliz pela construção do seu escrito mas saudoso por deixá-lo sair, rumo ao mundo, como um filho crescido.
João Malcher Santos
13 Outubro 2015
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
Longe
Longe - 28 Maio 2015
Longe
Longe.
Mesmo quando cá estavas, já estavas muito longe.
Lancei cordas na esperança de construir pontes, procurei atravessar o mar que nos separava.
Mas só me cansava.
Apenas podia contemplar o teu brilho. O brilho que vivia nos teus sonhos.
Vi os que sonhaste e imaginei os que irás viver.
Também vi os pesadelos. Vi-os já crescidos e a tornarem-se gigantes.
Combati-os? Não como devia. Mas tu lutaste. E acabaste por ganhar. Com um sorriso.
Foste embora e voltaste. E de novo desapareceste.
Às vezes, recordo. Por momentos, ficas perto.
Breves momentos.
Mesmo quando cá estavas, já estavas muito longe.
Longe.
Longe
Longe.
Mesmo quando cá estavas, já estavas muito longe.
Lancei cordas na esperança de construir pontes, procurei atravessar o mar que nos separava.
Mas só me cansava.
Apenas podia contemplar o teu brilho. O brilho que vivia nos teus sonhos.
Vi os que sonhaste e imaginei os que irás viver.
Também vi os pesadelos. Vi-os já crescidos e a tornarem-se gigantes.
Combati-os? Não como devia. Mas tu lutaste. E acabaste por ganhar. Com um sorriso.
Foste embora e voltaste. E de novo desapareceste.
Às vezes, recordo. Por momentos, ficas perto.
Breves momentos.
Mesmo quando cá estavas, já estavas muito longe.
Longe.
"One Month Challenge" - Abril/Maio 2015
Alguns dos posts de escrita que publiquei anteriormente, no blog "One Month Challenge".
26 Maio 2015
Cavaquinho, pequenino,
Quatro cordas de aço
Com a boca canta as notas
Que são tocadas no braço.
Cavaquinho, português,
Nascido na terra de Braga
Carrega em sim uma luz
Que nem de noite se apaga.
Cavaquinho, imortal,
Viajante do mundo inteiro,
Herança dos navegantes
Do Portugal pioneiro!
Quatro cordas de aço
Com a boca canta as notas
Que são tocadas no braço.
Cavaquinho, português,
Nascido na terra de Braga
Carrega em sim uma luz
Que nem de noite se apaga.
Cavaquinho, imortal,
Viajante do mundo inteiro,
Herança dos navegantes
Do Portugal pioneiro!
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