Cheirava a vida.
Tocou ao de leve na ombreira da porta, enriquecendo-lhe as cores. A porta fechou-se com cuidado, escondendo em casa os seus anseios.
Desceu para a chuva bem ritmada. Encontrou espaços secos de chão e usou-os para chegar ao automóvel.
De um lado para o outro e outra vez para o primeiro lado. Só a música rompeu o feitiço dos limpa para-brisas. Mas todos os pensamentos aconchegavam-se na pele, deixando-a paralisada. E era como se o mundo inteiro estivesse parado.
O mundo andou. Azuis e cinzentos desfiguravam pessoas, animais, casas, sinais de trânsito. Despesas, zangas, constipações, estar apresentável sem ter tempo para o estar, adicionavam tonalidades tristes ao cenário da viagem.
Para que se abrisse um caminho, juntou os faróis à sua própria luz. Brancos e dourados vivificavam os sonhos inomináveis dos transeuntes, erguendo as cabeças para conhecerem a dona do encantamento. Nesse instante, ela já ia longe.
Ouvia os risos e os gritos, a correria impaciente. Passou para a sala e elas dispararam na sua direção, rindo também. Ela e a sua assistente transformavam a sala num atelier enquanto as crianças ajeitavam almofadas coloridas.
As folhas de papel eram brancas como a neve; havia tintas, belas e adormecidas, bem como lápis de cor pequenos, médios e grandes; os alunos mais distraídos ficaram nas cantorias e os demais, que trabalharam o tempo todo, estavam quase a terminar a tarefa.
Saíram no meio de beijos e abraços, despedindo-se de mais uma aula. Cada criança guardava o pedaço de luz da sua professora luminosa. Esse pensamento acompanhou-a durante os turnos seguintes. Querendo, por vezes sem sequer querer, transbordava a luz para cada canto da sala.
O almoço desaparecia lentamente do prato, perdendo terreno para as conversas entre colegas de trabalho. Espreitou o sol e todos se levantaram, admirados de o ver por ali. Ela saudou-o e este brilhou um pouco mais, um brilho aberto de orelha a orelha.
Voou a tarde solarenga. Apagavam-se as luzes, sobrando a luz dela, a luz suficiente. Por momentos, a sua candeia esmorecia. Permitia que acontecesse, de quando em quando e somente quando estava sozinha. Aí fechava os olhos, molhando-os. Limpava pensamentos pesarosos, lixava saliências mal tratadas. Todos eles espalhavam sombra, pois as ondas luminosas, mesmo moribundas, cansavam a escuridão.
Volveu a casa com compras necessárias. Em boa verdade, agarraram-se uns apêndices, caprichos de gula bem comportada. Antes, esgotou as pretas em troco contado, acolheu o recibo quente e agradeceu à “funcionária X” o serviço bem aviado.
Amolecia o arroz no tacho, dourava os bifes no grelhador, amanhava a salada na saladeira, munindo-a de aromas com a ajuda de azeite, vinagre e sal. Os orégãos, mudos, mantiveram-se sossegados. Tinham tempo para ser úteis mais tarde.
Saltitou entre feridos, cartões vermelhos, risos de grupo, violações, paixões, vinganças, tempestades, iguarias, cães e gatos, candidatos ao sítio errado e estacionou na despretensiosa vista sobre Santorini. Mergulhou em prédios brancos de telhados cor de mar, encostou-se às ondas cor de telhados. Dormitou nas lojas apinhadas de turistas, sedentos de lembranças taylorizadas.
Matou os sons da televisão com um pressionar dormente no comando. Ergueu uma das cidades invisíveis, absorveu-a e piscou o olho ao autor cubano, tornado italiano, inquirindo o leitor dentro da primeira orelha do livro.
O reflexo, pronto para dormir, bocejou duas vezes. No final de cada dia recitava a mesma palavra.
“Alumia!”
João Malcher
10 de Janeiro de 2016
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