Longe - 28 Maio 2015
Longe
Longe.
Mesmo quando cá estavas, já estavas muito longe.
Lancei cordas na esperança de construir pontes, procurei atravessar o mar que nos separava.
Mas só me cansava.
Apenas podia contemplar o teu brilho. O brilho que vivia nos teus sonhos.
Vi os que sonhaste e imaginei os que irás viver.
Também vi os pesadelos. Vi-os já crescidos e a tornarem-se gigantes.
Combati-os? Não como devia. Mas tu lutaste. E acabaste por ganhar. Com um sorriso.
Foste embora e voltaste. E de novo desapareceste.
Às vezes, recordo. Por momentos, ficas perto.
Breves momentos.
Mesmo quando cá estavas, já estavas muito longe.
Longe.
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
"One Month Challenge" - Abril/Maio 2015
Alguns dos posts de escrita que publiquei anteriormente, no blog "One Month Challenge".
26 Maio 2015
Cavaquinho, pequenino,
Quatro cordas de aço
Com a boca canta as notas
Que são tocadas no braço.
Cavaquinho, português,
Nascido na terra de Braga
Carrega em sim uma luz
Que nem de noite se apaga.
Cavaquinho, imortal,
Viajante do mundo inteiro,
Herança dos navegantes
Do Portugal pioneiro!
Quatro cordas de aço
Com a boca canta as notas
Que são tocadas no braço.
Cavaquinho, português,
Nascido na terra de Braga
Carrega em sim uma luz
Que nem de noite se apaga.
Cavaquinho, imortal,
Viajante do mundo inteiro,
Herança dos navegantes
Do Portugal pioneiro!
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
A Utopia segundo Dionisio
Apraz-me falar de Dionisio.
Sigo-lhe a vida por uns tempos e concluo que um dia chega para o conhecermos. Pode ser hoje, por exemplo.
Não chove. Também não se vê o sol, há um céu mal pintado de nuvens longas, arrastadas sem vontade.
Com vontade, acorda Dionisio. Ele é cheio de vida, apesar da vida estar vazia dele. Por ser único, apraz-me falar de Dionisio.
Os críticos debatem a nova obra de Pierre Cars na televisão, no habitual programa da manhã. Dionisio faz zapping, sem encontrar algo de interessante: novamente o programa de teoria política, a análise do campeonato de xadrez noutro canal, o último capítulo da explicação detalhada dos aunerismas congénitos num terceiro canal. Dionisio para sempre no canal de culinária, observando a preparação de um pequeno almoço saudável. Ri-se, ao mesmo tempo que engole um pedaço gorduroso de bacon, previamente revestido com a gema do ovo estrelado que está no prato.
A sua mulher já está levantada, repetindo a tarefa de corrigir mais um exame do secundário. Retira os óculos de ver ao perto em cada pausa que faz, massajando os olhos azuis. Dionisio aproxima-se com um beijo de bom dia, recebido com cansaço mas devolvido com agrado.
- Este ano estão um pouco piores - afirma Moira, erguendo as finas sobrancelhas - Neste momento, a média das notas é de dezasseis valores.
- Dezasseis é ótimo - devolve o marido - Eles depois esquecem-se de tudo o que aprenderam.
- Não comeces com isso. Precisamos do melhor de cada um deles.
- Há vida para além das notas.
- Há, claro que há, mas para a vida que querem, têm de ser mais ambiciosos.
- Bah! Qualquer dia não temos ninguém que nos varra as ruas! - graceja Dionisio a caminho do chuveiro.
Moira fica em silêncio, marcando com um suspiro o regresso ao trabalho.
Dionisio canta alto no duche. É um hábito antigo, libertador, odiado pelo vizinho do lado. São dois problemas juntos: o desafino da voz e as letras brejeiras. Esse vizinho comenta com a sua mulher, quando a cantoria começa: “Que mal-educado!” e ela diz “O que será que a mulher viu nele!”. Moira viu a extravagância com olhos da mocidade; hoje vê algumas graçolas, as suficientes para manter o casamento. Pouco se alterou no modo de ser do marido. Ao fim e ao cabo, Moira não é fiandeira do destino.
Dionisio segue para a rádio, o seu emprego, uma rádio pouco convencional. As músicas nacionais são “pimba” e as restantes pop barulhenta, sem substância. Exaltam ao deboche, ao sexo desenfreado, às “parties” e “after-parties” e a um sem número de assuntos sem interesse. Mas como há um Dionisio, há também ouvintes, encantados com o bizarro apresentador. Ele é passar as referidas músicas, ele é entrevistar quem não deve, como o guionista da última novela, um tipo de programa transmitido apenas em canais privados. “Sandra vai fugir de casa e lutar pelo seu sonho: ser modelo fotográfico!”. E riem os dois, entrevistador e entrevistado.
Outro hábito de Dionisio causa má impressão: buzina quando o carro da frente cumpre o limite de velocidade, ultrapassando-o em manobras perigosas. Uma vez foi repreendido pela polícia e Moira repreendeu-o também, obrigando-o a dormir no sofá. Outra vez conseguiu subornar o polícia, secreto ouvinte da rádio, com ajuda de uma grade de minis que levava no porta bagagens.
Almoça como um animal. Nem respeita a roda dos alimentos. Onde estão as doses diárias recomendadas? Só ingere hidratos de carbono, açucares e pouco mais. Ao terminar, fuma. Não deixou o vício, nem quando a sociedade lhe deu a mão, mediante vários incentivos fiscais. Por incrível que pareça, nem todos os nossos impostos são bem usados.
Sai da rádio, liga a Moira. A mulher cumpre o intervalo das aulas, ouvindo Dionisio dizer que chega tarde a casa. Um “trabalho noutra rádio”.
- Uma ajuda ao Ricardo, lá sobre os assuntos dos migrantes.
- Não chegues tarde - responde Moira, secamente.
A sua mulher sabe muito bem quem são os “migrantes”: desportistas num pavilhão decadente, correndo atrás de uma bola num desporto erradicado, o futebol. E o dinheiro que fazem! Claro, existem aqueles velhos defensores das virtudes do desporto para o corpo e uns quantos efeitos sociológicos, da comunhão dos grupos. Convenhamos, pouco mais que isso se aproveita.
E no fim do jogo? Não importa o resultado, tudo acaba em copos: os vencedores mantêm viva a vitória, os perdedores afogam-na e os empatados empatam o tempo, bebendo.
Chega Dionisio empatado a casa, vermelho, rindo dos próprios soluços. O frigorífico estende-lhe um chamativo cacho de uvas e Dionisio leva-o para sala.
Está sentado no sofá, todo torto, tem sorte a mulher não apresentar queixa. Moira concentra-se ao máximo no debate político, gente humilde, transparente, em quem se pode confiar.
- São uns tótós, não tiram nada para eles! - comenta Dionisio.
- Tens noção do que dizes? Palavra de honra…
- Não tiravas, não?
- Acaba lá com essas coisas, se faz favor. Esta gente serve-te!
- Anda lá, Moira, estou a brincar!
- Não sei, às vezes assusto-me com essas brincadeiras.
- Moira, então, isto é tudo um exercício mental que faço. Não é o que tu dizes, para fazer o exercício mental?
- Ah, queres fazer um exercício mental! - a mulher desliga o televisor - Podes explicá-lo, estou curiosa em ouvi-lo.
Num arroto monumental, Dionisio limpa a voz galhofeira.
- Imagina que os políticos roubavam, que o dinheiro dos nossos impostos desaparecia; imagina que na rádio não ouviamos essa treta to jazz, da música clássica, do rock “bom” (sempre músicas diferentes, não dá para fixar nenhuma); imagina que tinhamos programas de jeito, onde uma pessoa se divertia a ver cantores portugueses e se comentava a bola. Queres ver xadrez e documentários? Não era considerado serviço público; imagina, imagina, que belo seria o mundo, se vivessemos só para hoje!
Moira fecha a boca, aberta pelo espanto, inspira para trazer ar e expira o que não faz falta.
- Ok, isso é uma distopia tão imbecil, mas tão imbecil e horrível…
- “Distopia”? Querias dizer “utopia”! Sei alguma sobre o significado das palavras.
- Dionisio, chega! Uma coisa é brincares com isso de vez em quando; agora, tu passas o dia com essas ideias estúpidas na cabeça!
- Mas seria bom! Vivemos com tédio…
- Quantas cervejas bebeste hoje? Vai-te deitar.
- Moira…
- Mas qual Moira? Qual Moira? Vejamos: queres políticos que te enganem, queres ouvir as mesmas músicas na rádio mil vezes por dia, aquele pimba, mil vezes repetidos; queres ver futebol e pessoas a falar de futebol, já agora a ganhar rios de dinheiro. E queres também pessoas menos qualificadas, não é? Porque a média de nada serve! Como foi que disseste? “Eles depois esquecem-se de tudo o que aprenderam?”
- Toma uma uva, estão mesmo boas.
Uma das frutas voa da mão direita de Dionisio e esbarra com a testa de Moira.
Quase tão vermelha como o marido, volta-se para televisão.
- Que gracinha, rei das festas!!!
Dionisio ri-se da frase da mulher.
- Ainda escrevo um livro. “A Utopia segundo Dionisio”.
- Ora, e porque não? E se for um romance, ainda se torna best-seller! - ironiza Moira - Posso ao menos saber como termina essa estória?
Dionisio ri-se, mais alto do que precisa. Engole outra uva e responde à curiosidade da esposa:
- Não acaba. Cometiam erros e voltavam a cometer; solucionavam-se uns e nasciam outros; cada um por si, quanto mais melhor; o tempo passava… mas não se passava nada. E quem podia gozava! - eleva o braço direito no ar, segurando um invisível copo de tinto:
- Tchim-tchim!
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