quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Rugas e rebuçados



Era mais uma tarde fria, como só as tardes de inverno sabem ser. Um pequeno plano de luz convidou uma senhora idosa e uma criança a sentarem-se no banco de jardim. Aquele lugar era um refúgio de luz e calor (calor não, era apenas menos frio).
Como de costume, a senhora, conhecida como “avó”, retirava de um dos seus sacos um pedaço de pão rijo. A criança, chamada de “neto”, recebia o manjar e debatia-se para dividi-lo em pedaços mais pequenos. Os pombos eram menos que o costume, mas a luta pelo alimento era vivido do mesmo modo.
  • Oh vó, porque é que os pombos não dividem a comida? Não gostam uns dos outros?
  • Oh filho, não te preocupes, eles comem bem. Já viste que gorduchos estão!
Um casal estrangeiro seguia uma criança estrangeira, que por sua vez seguia uma bola cor-de-rosa. Percebia-se logo que eram estrangeiros: eram altos, loiros e até o andar era diferente. Os pais chamavam a filha com aquele falar engraçado e por ser engraçado o neto ria. A avó ria por ver o neto rir, até este se tornar sério e fazer mais uma das suas infinitas perguntas.
  • Oh vó, como é que a menina já sabe falar o inglês?
  • Oh filho, os pais deles falam inglês e ela de tanto ouvir aprende.
  • Eu oiço inglês e não aprendo - queixou-se o neto.
  • Mas a menina ouve desde bebé.
  • Então se eu ouvisse chinês desde bebé agora falava chinês?
  • Provavelmente…
  • Isso é o quê? “Provalmente”?
  • Quer dizer que sim, pronto.
  • Então se eu ouvisse muito muito chinês em pequeno agora tinha os olhos assim?
O neto puxou a pele junto dos olhos em direção às orelhas, com os indicadores. A avó riu.
  • Não, isso não! Olho o teu avô Baltasar, fala muitas línguas e tem os olhos redondos.
  • Hum, pois é.
O frio abraçava a avó e o neto, mesmo por debaixo dos casacos, cascóis, luvas, gorros, botas e embaciava os óculos da avó.
  • Vamos andando que está a ficar tarde e a avó ainda tem de fazer o almoço para amanhã.
  • Espera, vó! Só mais um bocadinho!
  • Amanhã vimos cá outra vez. Vamos lá.
Cabisbaixo e de braços cruzados, o neto procurou uma pedra que pudesse pontapear. Mas até as pedras deviam ter fugido do frio, porque não se via nem uma.
  • Oh vó!
  • Diz, filho.
  • Os estrangeiros também pensam como nós?
  • Penso que sim, porquê?
  • Se eles falam outra língua, podiam pensar coisas diferentes.
  • Oh filho, estás a ser muito filosófico.
  • “Fisolofico”? Isso é o quê?
  • É uma pessoa que pensa muito. Mas conta lá, como é que uma pessoa estrangeira pensa em coisas diferentes?
  • Hum… olha, o pai diz que só os portugueses dizem “saudade”. Os estrangeiros não pensam na saudade pois não?
  • Oh filho, nem sei bem. Devem pensar… afinal de contas, são pessoas como nós.
Todo o parque era agora sombra. O frio já não tinha ninguém para abraçar a não ser a avó e o neto. A avó descobriu rebuçados de mentol no bolso do casaco, oferecendo-os ao neto. Desembrulhando um dos rebuçados, o pequeno sorriu, um sorriso limpo da idade. A avó mostrava o seu sorriso mais antigo, enrugado, mas que nunca se gastava.

João Malcher - 23 de Dezembro de 2015