segunda-feira, 9 de março de 2015

A Casa no Interior

4 - A Casa no Interior



O som favorito de Ivo era o silêncio. Não era algo que dissesse aos amigos para parecer um conhecedor de todos os outros sons que existiam. O silêncio era o som de que precisava para pensar com clareza, para criar, para escrever. Assim que o ritmo parava, um compasso ordenado disciplinava-lhe o pensamento. Quando as notas se desvaneciam, ruídos coloridos formavam ideias. O silêncio era mesmo o melhor dos sons. Por isso, Ivo sentia-se nas nuvens quando, por volta das duas da manhã, teclava relaxadamente no seu portátil, envolvido numa ausência de som tão poderosa que muitos poderiam considerar claustrofóbica.
O maior desejo de Ivo era criar uma história original. Queria provar aos seus críticos que não era um “fabricante de literatura light” nem uma “impressora de dinheiro para a sua editora”, sendo estes dois dos exemplos mais simpáticos que tinha lido sobre si nos jornais. Também queria desafiar-se a si próprio e aos seus verdadeiros fãs ao escrever uma história de terror, puro e duro. Ainda ninguém sabia da ideia, a não ser Raquel, que fazia parte da editora. Era muito arriscado, principalmente porque fugia da fórmula de sucesso que usara anteriormente. O público adorava o herói dos “Segredos de Bolso”, um agente secreto por conta própria. Este escapava sempre dos inimigos ou das autoridades nas últimas páginas do livro, repleto de ação e suspense. Todos os casos que investigava começavam com uma mensagem colocada num bolso do seu sobretudo, daí o título sugestivo. Com cinco volumes publicados, o sucesso era de tal ordem que já existia uma série de televisão e falava-se de um possível filme, realizado por uma produtora independente inglesa.
Apesar de tudo, Ivo queria correr riscos e como era o único escritor português que enriquecera com a escrita, podia dar-se ao luxo de o fazer. Sem mais impedimentos, bastava iniciar o processo de escrita. Escrever a história de terror que ninguém tinha lido. Rebater todas as más críticas do passado. Seguir os caprichos da sua imaginação, revolvendo do fundo de si mesmo os seus piores anseios e apresentá-los com outros personagens, outros nomes e  outros cenários, mantendo o que fosse verdadeiro como os pilares do horror. Mas começar por onde?
Aqui residia o cerne da questão, pois desde que decidira arriscar no desvio literário, a inspiração abandonara-o. Onde estava o teclar ponderado mas fluído, que fazia a ponte entre o mundo das ideias e o mundo real? Como fugiam da sua vontade os cenários verossímeis onde se movimentavam personagens carismáticos, em intrigas mirabolantes com resolução inesperada? Seria realmente um fabricante de fast food literário, confinado aos desvarios do seu agente secreto?
Ivo conhecia-se e tais receios não eram verdadeiros. Simplesmente não eram. “Talvez”, pensou para si próprio, “talvez uma estória diferente necessite de um método diferente”. Suspendeu a sessão no seu pc, bateu palmas para acender o candeeiro do teto (que nunca funcionava à primeira) e assim que se viu à luz do dia artificial, levantou-se e caminhou escada acima para o quarto. Deixou uma nota junto da mesa-de-cabeceira de Tânia, a esposa que dormia tranquilamente e escolheu uma roupa para o acompanhar num passeio noturno. Invejoso, o sobretudo negro estendia uma manga para esconder o cachimbo de Ivo, uma chantagem que convenceu o seu dono a levar os dois artigos sem mais demoras. Não sendo um fumador compulsivo, o escritor dos “Segredos de Bolso” achava por bem criar uma certa imagem de marca da sua pessoa. Além da afamada “Chaminé de Bolso”, Ivo era conhecido e reconhecido pelo penteado peculiar, um cabelo acinzentado curto que se prolongava em longas suíças nos dois lados da face. Não se sabia ao certo se era o cabelo que era demasiado curto para as suíças ou o contrário, mas o mais correto era afirmar que um fluxo contínuo de cabelos modelava-se na sua cabeça, como se de um capacete uniforme se tratasse.
A ronda noturna e inusitada aparentava para já similaridades com o giro vespertino e rotineiro, não estivesse a casa de Ivo inserida num local pouco frequentado, longe da azáfama de um qualquer prédio no centro da cidade. Também (talvez mais importante) longe de olhares bisbilhoteiros, criadores de boatos da vida alheia.
Ivo seguia na estrada de cascalho que partia da sua garagem, descendo pela curva traiçoeira, junto do antigo carvalho inclinado. Por momentos, pareceu-lhe ouvir o som de um carro, ao longe.
“De súbito, os travões morreram e o condutor, abrindo a porta, saltou assustado para o terreno acidentado, ouvindo o estrondo provocado pelo embate da viatura na terrível árvore negra”, magicou Ivo. Sorriu, pois vira uma das cenas do seu novo livro surgir com naturalidade. Que estilo usaria? Mais direto, sem floreado? Sugestivo? Contado na primeira pessoa? Eram questões cujas respostas só seriam dadas mais tarde. No entanto, aquela primeira faísca fora o suficiente para deflagrar um incêndio, um incêndio de ideias que a sua mente disciplinada organizaria mais tarde, junto do seu pc.
“Olhou para trás para ver se continuavam no seu encalce, mas o nevoeiro cerrado só lhe permitia ouvir rugidos pouco humanos. Levantou-se, ganhando forças ao medo e tentou correr estrada abaixo. O corpo dorido concedeu-lhe uma corrida desajeitada, insuficiente para impedir o aumento da sombra humanoide. Uma mão surgiu das sombras e…” Ivo assustou-se, quando um gato preto se atravessou no meio da estrada silenciosa. Continuou estrada abaixo, recompondo-se do sobressalto e optou por um caminho bosque adentro, visível pelo solo marcado por passadas humanas.
Nesta zona ainda mais isolada, o silêncio era frequentemente interrompido pelo piar das corujas. Ivo guiava-se habilmente por um forte sentido de orientação, auxiliado pelo luar intenso e pelas estrelas estáticas. Uns bons metros depois deteve-se, apreciando a lagoa serena à sua direita, um semicírculo a refletir a imensidão celeste. De dia, o fundo era perfeitamente visível, e a expressão “águas cristalinas” completamente adequada; de noite, o tal efeito refletor ocultava o segredo da profundidade.
“... era apenas um ramo de uma árvore. Os rugidos tenebrosos morreram naquele instante. Desorientado pela fuga e pelo nevoeiro, surpreendeu-se por já não estar na estrada principal e sim num caminho pedestre que terminava numa lagoa. A água borbulhava no centro da lagoa, criando movimentos ondulatórios. Alguma coisa, viva, lutava para respirar.”
Ivo soltou um grito mudo quando reparou que o seu pensamento descrevia agora a realidade. Lutou contra uma sensação paralisadora, e entre a curiosidade e o medo, a primeira saiu vencedora. Entrou tal como estava na água e não teve de andar muito para encontrar o corpo ainda quente de um homem adormecido. Arrastou-o para a margem, libertou-se do sobretudo ensopado para lhe facilitar os movimentos e recorreu às técnicas de reanimação cardiorrespiratória (afinal, aquele curso no Verão servira para alguma coisa).
O homem não reagia como Ivo imaginara; parecia que se encontrava sedado. Não havia sinais de mazelas exteriores, ou assim pareceu numa primeira olhadela: um dos pés do homem estava descalço e os pulsos vermelhos evidenciavam algum tipo de corda que exercera pressão durante bastante tempo. O sangue corria lentamente. O escritor ficou também surpreendido pela indumentária do indivíduo sonâmbulo. As roupas assentavam impecavelmente, indicando que tinham sido feitas à medida. Este pormenor tornava tudo ainda mais bizarro.
Ivo não tinha o telemóvel consigo nem qualquer pessoa a quem pedir ajuda naquele local isolado. A distância de sua casa era suficiente para que Tânia não acordasse com os gritos. Em alternativa, deixava o corpo para trás e correria para casa o mais depressa possível. O escritor optou por levantar o homem adormecido sobre os braços, carregando-o o mais longe que conseguisse, enquanto clamava pelo nome da mulher. Sentia um misto de terror e orgulho, pois comportava-se com uma frieza sublime num quadro assustadoramente surreal.
Os gritos ecoavam na estrada vazia. Ivo parou uns segundos para recuperar o folgo. Já avistava a sua casa e não se via qualquer sinal de que os seus chamamentos tivessem sido ouvidos. A distância era tão curta e ao mesmo tempo longínqua. 
“Da lagoa surgiu um ser pálido, uma réstia de homem num corpo escamoso. Perseguiu o homem assutado, que voltou à estrada desolada”. 
Ivo voltou a carregar o homem, dirigindo-se para casa. Gritava a plenos pulmões e o medo que até então estava sujeito à curiosidade crescia, acompanhado por um sentimento de impotência ao deparar-se com tal situação. “A escolha não fora a mais acertada: o homem estava cercado em duas frentes, pela criatura do lago e pela outra que descera da mansão maldita. Desistindo, caiu de joelhos e começou a chorar efusivamente. Quando os dois seres se aproximaram, o homem tinha já criado uma poça de urina no chão”.
Ivo não desistiria facilmente e quando chegou junto do antigo carvalho, as luzes do seu quarto acenderam-se. O vulto de Tânia abriu a janela, fez um gesto de levar as mãos à cara e desapareceu. Segundos depois, o andar do rés-do-chão iluminava-se e a mulher de Ivo corria envolta num robe salmão: perplexa por um lado, mas por outro consciente do que havia a fazer. Vinha a falar ao telefone todo o percurso, dando indicações sobre o que via no momento. Ivo pediu o telefone e Tânia dirigiu-se para o homem que parecia morto, mas não estava. Os olhos da sua mulher faziam um sem número de perguntas, mas os de Ivo devolviam apenas um “não sei, mas vai ficar tudo bem”.
“Os seres nada fizeram. O homem limpou o ranho e as lágrimas e começou a rir. Eram gargalhadas de felicidade quase pura. Quase, porque o pavor não o abandonara e o desconhecido continuava ao derredor, na forma das duas criaturas fantásticas”.
Foram precisos quase quinze minutos para que a ambulância chegasse. Na espera, Ivo ligou para o vizinho mais próximo que tinha, José, mas este respondeu exaltado e pior ficou quando Ivo lhe disse que estava na sua casa. No entanto, não deu nenhuma explicação do porquê desse agravamento no seu estado.
 Tudo aquilo era um pesadelo, uma partida sem graça. A sua mulher estava mais afetada que ele próprio, ou talvez estivessem os dois a sentir o mesmo. Apenas o expressavam de modo diferente. Enquanto Tânia criava uma ladainha, misturando preces divinas com monólogos sobre o sucedido, Ivo entrara em casa buscando outro cachimbo, pois a sua fiel “Chaminé” estava no sobretudo junto à lagoa.
Ao fim do quarto de hora arrastado, a ambulância, um carro da polícia e o vizinho de Ivo travaram as suas viaturas. Um casal de socorristas voou para junto do homem inconsciente, um polícia para junto de Tânia e outro polícia correu com José para a entrada de casa, onde Ivo surgia com um cachimbo aceso.
“Havia um terceiro ser e mesmo com o nevoeiro cerrado sobressaiam dois focos luminosos vermelhos. Era mais humano no aspeto que as restantes criaturas, exceto no olhar brilhante. O homem esteve especado durante um breve instante e então apercebeu-se que não eram olhos humanos que o olhavam, mas olhos artificiais, robóticos, iluminados de dentro, como dois pequenos faróis escarlates, sobre um fundo branco estranhamente sereno.
- Precisamos de falar - disse a figura misteriosa”.
O polícia começou lentamente a sua explicação, mas José não aguentou e falou por cima. Havia um assassino à solta.
                Ivo quase desmaiou. O seu estômago estava às voltas, quente; a sua testa fria, repleta de suor e sentia esse efeito também nas suas mãos. Nunca tivera os lábios tão secos. Ivo pensou também que, se o coração continuasse a bater daquele modo, seria vítima do terror puro. Tinha de sair dali.
                Chegaram mais carros da polícia. Dois deles escoltavam a ambulância, que antes de fechar portas deixou o diálogo dos dois socorristas pairar no ar. O homem fora envenenado.
                “- Não irás morrer - o ser de olhos luminosos falava para o homem, amarrado numa cadeira da sala, dentro da mansão de onde tinha tentado fugir. As duas criaturas, inexpressivas, estavam de pé junto ao humano aterrorizado - Sofrer sim. Oh, isso sim - segura na mão esquerda uma ampola cinzenta - Sofrer faz parte da natureza humana. Mas matar… eu sou incapaz de fazer tal coisa. Não serei assassino de ninguém. Repulsa-me. Agora, não se pode deixar um ser desobediente por aí à solta. Jamais! Enquanto eu cá estiver, os castigos aplicam-se. Cada um recebe na perfeita medida do seu ato.
-          Mas eu… eu… - o homem soluçava incessantemente - eu não fiz nada, eu juro, eu não fiz nada, não fiz, não fiz…
-          Não fez, não fez - o ser sombrio soltou uma gargalhada sonora - meu caro, …”
                Ivo segurava a mão de Tânia com todas as forças que lhe restavam. Nem sequer o facto de seguirem no banco de trás de um carro da polícia lhes trazia segurança naquele momento. Minutos antes, ele e a sua mulher podiam ter sido atacados. Podiam ter sido mortos. Tão simples como isso. Ninguém saberia de nada. Talvez só no dia seguinte. Seria notícia de abertura do telejornal.
                Iam para casa de uma tia afastada de Tânia. Teriam duas horas de viagem pela frente. Não se importavam nada em não dormir: aliás, fariam de tudo para se manter acordados, alerta. Ivo sentia-se observado durante toda a viagem. Um dos polícias olhava constantemente pelo espelho retrovisor. Ivo interpelou o polícia, que se desfez em desculpas. Era fã dos “Segredos de Bolso” e não resistiu a mostrar o seu apreço pelo brilhante escritor. Tânia pediu que deixasse o marido em paz, mas Ivo encontrou ali um escape e respondeu a todas as questões do agente da autoridade. A viagem passou mais depressa.
                A meio do percurso, despediram-se de José, que continuou acompanhado pela escolta policial. Tonturas fortes causavam uma desagradável sensação de enjoo ao atordoado escritor.
                “... precisamente por não ter feito nada é que deve ser castigado - Um dos seres humanoides forçou o prisioneiro a abrir a boca, enquanto o chefe do trio misturava o conteúdo da ampola num copo de água. Ao mesmo tempo, despejou um líquido vermelho, cuja cor e textura eram semelhantes a sangue, noutro copo para si mesmo. Deu o copo com a ampola a um dos humanoides, que se dirigiu ao prisioneiro lentamente e elevou o outro à altura da cabeça, sorrindo.
- Saúde!”
- Vocês estão bem? - a tia de Tânia abraçou a sobrinha efusivamente - Meu Deus, que horror! Tenho estado a ver as notícias, horrível, horrível, tentei ligar para ti…
Ivo cumprimentou a anfitriã e logo perguntou pela casa de banho. Abriu a torneira de água fria e lavou a cara repetidamente, lançando-a com mãos trementes.
“O homem gritou até perder a voz. De seguida começou a ter fortes convulsões e finalmente acalmou-se, não por se esgotarem as forças mas porque uma qualquer parte de si morrera com os efeitos do líquido que ingerira. Exteriormente, era um sonâmbulo com olhos semicerrados; interiormente, um ser que apenas reteve as funções motoras. Os sentimentos e os pensamentos eram conceitos do passado e estariam armazenados na sua memória para recordar um dia mais tarde. Isto, claro, enquanto a memória funcionasse.
- Volte para casa. A sua esposa já deve estar a estranhar a sua ausência – estendeu uma faca de cozinha ao sonâmbulo, que a agarrou com força, em pleno contraste com o comportamento dos outros membros do corpo. O homem assentiu com a cabeça e regressou a pé ao seu lar.”
O escritor massajou as têmporas com o indicador e o dedo médio de cada mão. Pegou na toalha áspera e secou a face cansada. A cor natural do rosto voltava gradualmente.
Tânia e a sua tia reconfortavam-se com uma lasanha do dia anterior e Ivo sentou-se à mesa para desfrutar daquele aconchego ao estomago. Na televisão, o pivot jornalístico entrevistava o chefe das autoridades, dando conta que uma das vítimas sobrevivera ao ataque e ajudava na elaboração do retrato robot. O rosto de uma mulher anafada, na casa dos trinta e cabelo curto foi apresentada no ecrã, ao lado de uma faca de cozinha. A arma do crime, portanto.
A noite mais longa das suas vidas morreu com o raiar do sol, anormalmente quente para aquela altura do ano. Tânia ainda dormia quando Ivo, acendendo o cachimbo, saiu do quarto e procurou a janela da sala para fumar. A tia de Tânia cirandava casa fora, acompanhada pelo telemóvel. Disse "bom dia" apressadamente e continuou a conversa. Falava, claro, do assassino à solta. A televisão não estava ligada, mas o rádio anunciava novos desenvolvimentos.
“O sonâmbulo pegou na chave e entrou em casa. Tinha a faca atrás das costas como se fosse entregar um presente de aniversário a uma criança. Não tinha quase nada para disfarçar porque não sentia quase nada. A sua mulher devia estar a dormir no quarto. Avançou para a porta branca”.
Ivo ficou especado no alpendre da reconfortante casa. Era a primeira daquela povoação, a mais antiga de todas. Nesta zona, o trânsito era reduzido, quase nenhum. Em comparação com o que corria junto à sua própria casa, parecia interminável. Um carro negro passou lentamente e Ivo sentiu um calafrio na espinha. Esperou que o carro saisse do seu campo de visão e voltou a entrar em casa.
Uma estranha ideia começou a formar-se na mente do escritor. Via-a vivificar-se como se um relógio se estivesse a materializar à sua frente. As peças encaixavam e trabalhavam, as rodas dentadas empurravam outras, os ponteiros batiam uma pulsação ordenada. Ivo reconhecia aquele carro. Mas de onde? Não era o carro em si. Ivo sabia…
                - Conseguiste dormir alguma coisa?
                Ivo assustou-se com a pergunta de Tânia, olhando-o petrificada. Não se refizera da noite anterior. O escritor abraçou-a e encaminhou a mulher para o sofá, onde se detiveram em silêncio até que a anfitriã desligou o rádio.
                - Precisamos de um pouco de silêncio.
                Clic.
                Era isso.
                Ivo já sabia como reconhecia o carro. Não pelo seu aspeto, mas pelo som. O som que ouvira junto do velho carvalho e que na altura lhe parecera produto da sua imaginação. O som que agora crescia demoradamente. 
                O carro voltava para trás.
                A tia de Tânia começou a reclamar com o som da viatura, mas Ivo fez sinal para que se calasse. Tanto ela como Tânia ficaram espantadas, mas depressa assentiram e afastaram-se o mais possível da porta.
                “Toc toc toc. O sonâmbulo bateu à porta. A sua mulher perguntou “Quem é?” e pelo nome do seu marido.
                  Toc toc toc. Outra vez.
                  Levantou-se e pensou se havia de abrir ou não a porta. Pegou no telemóvel”.
                - Po-polícia! – sussurrava a tia de Tânia pelo telemóvel, enquanto recitava a morada de sua casa.
                 Toc toc toc. Continuavam a bater. Três pancadas secas, ritmadas. 
                  Ivo susteve a respiração.
                “Toc toc toc. O telemóvel não apanhava rede. Decidiu abrir a porta. Só podia ser o ser marido. Talvez estivesse... bêbado? Não ele nunca ficava bêbado. Mas tinha de ser ele. Quem mais podia ser? 
                Abriu a porta.”
                Pararam de bater. O carro arrancou a alta velocidade e uma camada de pó cresceu do chão, visível da janela da cozinha. Ivo decidiu abrir a porta.
                Não viu ninguém.
                A polícia chegou assim que a poeira assentou.
                Ivo, Tânia e a sua tia esperavam na esquadra com familiares de uma das vítimas. O escritor recuperava alguma da sua frieza e estava atento às conversas alheias, em busca de qualquer pista que o acalmasse. Entre tanto medo e dor havia sempre alguém que reconhecia o famoso escritor e os pedidos de autógrafos eram constantes. Ivo precisava de desanuviar. Foi quando deambulava pelos corredores, junto à máquina do café, que escutou um diálogo vindo de uma porta entreaberta.
                - … vítimas em cativeiro na casa dela. Um deles fugiu e libertou os restantes – ouviu-se o som de bolos duros serem mastigados – a tipa deve-se ter passado.
                - E foi atrás deles? Isso é muito arriscado!
                - Arriscar o quê? Se eles andassem por aí e contassem tudo, acabava-se o jogo dela.
                - Jogo?
    - Um jogo maluco – fez-se uma breve pausa – Ela era totalmente doida. Tinha uma coleção de ... 
    - De quê? 
    Do outro lado da porta, o escritor evitava fazer qualquer som. 
    - De “bonecos humanos".
                - Bonecos? - respondeu  a segunda entidade, perplexa.
                O som dos bolos duros reapareceu até que a primeira figura retomou a conversa.
                - Todas as vítimas estavam vestidas com roupa feita à mão. Encontraram miniaturas iguais ao vestuário das vítimas. Acessórios a combinar: sapatos, chapéus, meias... tudo. Vê isto - o som das teclas do computador parecia gigante ao sair para o corredor quase deserto - A Andreia cruzou dados e descobriu que o velho alfaiate recebeu clientes com bastante regularidade nos últimos meses.
                Um novo som saiu da sala e Ivo identificou-o como sendo o scroll de um rato de computador.
                - Minha nossa…
                - Estranho, não é? – o amachucar de um papel indicava o fim dos bolos – Bem, só o facto de ir a um alfaiate nos dias de hoje já é doença que chegue.
                O segundo interveniente riu e comentou de seguida:
                - Ou isso ou tem os bolsos cheios.
                A dupla riu em conjunto. Ivo voltou sorrateiramente à sala de espera.
                Ao fim de uma semana de buscas foram encontradas as restantes vítimas. Num comunicado oficial, eram seis os indivíduos que foram feitos prisioneiros na cave da mulher monstruosa. Os vizinhos nunca suspeitaram de nada. Diziam que era boa pessoa. 
                As autoridades estavam intrigadas com o desaparecimento da mulher e no início surgiram muitas pistas falsas. O perímetro das buscas foi alargado.
                Foi também ao fim de uma semana que Ivo quis regressar à sua casa isolada. A polícia era contra, pois receavam que a criminosa voltasse ao local do crime. Obviamente, Tânia e a sua tia partilhavam da mesma opinião. Mas o escritor tinha já a sua estória completamente formada na sua mente e era urgente voltar ao seu refúgio para transportá-la para o computador. Ao fim de longas conversas, o escritor teve o privilégio de receber dois seguranças privados, a trabalhar por turnos, de modo a estarem com ele para que Ivo pudesse, pelo menos, escrever o esqueleto do seu novo livro. Não era o que desejava, mas era melhor que nada e dada a situação, as coisas até corriam de feição. Não fossem os recentes acontecimentos e Ivo poderia nunca ter inspiração para um livro de terror. Tinha de ver o lado positivo da coisa.
             Tânia decidiu ficar em casa da sua tia e ansiava que o marido voltasse são e salvo no final da semana.
No silêncio da primeira noite de regresso a casa, um novo detalhe veio à mente do escritor. No noticiário, nunca se fizera referência ao facto da vítima que Ivo encontrara ter sido amarrada. Se os indivíduos estavam drogados, para quê amarrá-los com tanta violência? Ivo tinha também feito a descrição do carro negro. A polícia disse que a mulher doentia não tinha carta de condução, nem nenhum vizinho possuía um carro com essa cor ou dessa marca. Seriam duas pessoas diferentes?
Ivo foi refrescar o rosto à sua casa de banho. Os vigilantes procediam à troca de turnos e cumprimentaram-no do fundo do corredor. O escritor encostou a porta e continuou a banhar-se de frente ao espelho. Secou-se com a sua toalha macia e voltou ao computador.
Estava quase. A sua nova obra-prima, ou a estrutura principal da mesma, fechava-se com o final macabro.
TUM.
Um estranho ruído esbateu-se junto da porta de entrada. Ivo volveu o olhar mas o campo de visão era minúsculo. 
TUM.
Um segundo ruído, semelhante ao primeiro, fez saltitar o coração de Ivo. Levantou-se da cadeira.
Ao aproximar-se da entrada, discerniu um vulto imenso que segurava um sapato na mão. Os corpos dos dois vigilantes preenchiam o chão, cada um marcado com uma mancha escarlate no pescoço. A figura volumosa era uma mulher, com um cabelo curto ruivo. Da sua face escorriam lágrimas de alegria.
- Oh, veja! O sapato ainda aqui estava. Este fica para recordação!
 O escritor susteve a respiração. Viu o sapato e reconheceu-o. 
 Ivo engoliu em seco. 
- Não gosto de si – a expressão de felicidade da mulher transformou-se num ápice – Não gosto das suas suíças. Você ...
A mulher, completamente transfigurada, avançou para Ivo.
- ... você mete-me medo.
“O braço moveu-se com uma velocidade impressionante. O bramido terminou assim que a faca saiu do pescoço da vítima. Quando se apercebeu do que acontecera, o homem soltou uma última lágrima de tristeza. Ficou sozinho. Sozinho, com o seu amado silêncio.
Fim”.

Terminado em 09/03/15